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A Kina que não me kine!

Há dias, num daqueles gestos idiotas que é começar a varrer canais desde a RTP1 até ao UniFé, onde nunca chego, dei de caras com uma senhora idosa e com marcas de tempo na cara. Ao mesmo tempo lembrou-me um macaco africano, dado os lábios, e um ET daqueles cinzentos, com a tola muito larga, numa fusão zoológico-galáctica que apenas a televisão pública consegue patrocinar com o nosso dinheiro.

Até que alguém lhe disse: «Kina, tu não podes…», e eu, cá para mim: «Alto. Parou, Almeida. Vê lá bem a dita senhora», pois reconheci ali a relíquia de uma era em que a ambição ainda se media em palmos de antena e a vergonha era um artigo de luxo.

Da Condenação a Trabalhos Forçados em Areias Algarvias

Como que um elástico de Einstein, fui parar a 1993, quando um director teve a péssima ideia de me mandar como enviado especial ao Algarve para cobrir as “férias dos famosos”. Não conhecia nenhum, pois os “famosos” que eu reconhecia não iam para o Algarve, preferindo refúgios mais consentâneos com a sua notoriedade, como a Galiza, Cuba quando não era moda ir a Cuba, ou as paragens de Cabo Verde, ou outras. E ali fui eu, munido de papel, caneta, tabaco, um gravador de K7s e uma desvontade dos 10 dias à minha frente, sentindo-me como um botânico enviado para estudar a flora de um parque de estacionamento em betão.

Da Anatomia da Fama em Posição de Decúbito Dorsal

A primeira entrevista, já marcada pela redacção, era com a Kina, e a verdade é que sabia lá eu quem era a Kina. Kina, para o jovem repórter, era o terceiro tempo verbal de Kinar (morrer): Ele Kina, um presságio linguístico que, na altura, me pareceu de uma justeza

poética absolutamente assinalável para a tarefa que me esperava. Lá me encontrei com ela numa praia não sei onde; era nova, mas já era velha, um paradoxo temporal que me fez pensar em alguma alergia ao pó, alguma alergia a fungos, uma coisa semelhante.

Do Estudo Comparado entre a Betty Page e o Desejo Monárquico Infantil

Cheguei, a senhora foi muito simpática e quis despachar as fotos, o que interpretei como um raro acto de misericórdia para com a minha alma agnóstica, e assim foi. Ora se punha de perna ao léu, ora mostrava o decote mais aberto, ora posava como uma aprendiz de Betty Page a quem tivessem explicado a teoria por telefone, mas negado o acesso às imagens originais. A entrevista foi péssima, uma sucessão de inanidades que culminou na revelação bombástica que mudaria para sempre a minha percepção do cosmos: só me dizia que queria ser a Xuxa portuguesa.

Ora, a Xuxa era um fenómeno brasileiro de uma jovem que fazia programas deliciosos para miúdos, e a Kina, em promessa solene feita perante um gravador moribundo, ia ser a Xuxa. O esforço que fiz para não cair ao areal a rir foi hercúleo, digno de figurar nos anais da contenção jornalística, logo ao lado do célebre silêncio do professor Anacleto Pederneira quando, no seu tratado “A Desimportância Relativa de Tudo”, confessou que a sua verdadeira paixão eram as reticências. Nunca mais a vi (obrigado, senhor) e nunca mais a ouvi, ficando apenas a memória daquele delírio messiânico, daquela ‘ambicionite’ aguda que grassava pelas praias do sul como uma praga bíblica de segunda categoria.

Do Zapping como Arqueologia do Presente Contínuo

E neste zapping inocente, que pára sempre na RTP Memória, voltei a ver uma das cenas mais divertidas da minha juventude operária, a prova irrefutável de que o tempo, esse grande humorista, adora repetir as suas melhores anedotas. Aquilo marcou-me pelo ridículo, pelas poses, pela compaixão com que lhe fiquei, uma espécie de ternura que se dedica a um insecto que insiste em voar contra um vidro, convencido de que do outro lado está o paraíso e não apenas uma sala de estar igualmente desinteressante. Ao voltar a vê-la na pantalha, já nos seus 70 e muitos, fiquei sem saber se conseguiu ser raínha das crianças ou reles aristocrata dos casamentos, mas como passei à frente, desejo-lhe sorte.

Da Oração Final pelo Verbo Intransitivo

Que não se apresse a conjugar o verbo que lhe deu o nome, pois este país necessita desesperadamente dos seus monumentos ao querer-ser, estas estátuas vivas que nos recordam que a distância entre o sonho e o seu contrário é, muitas vezes, apenas uma questão de ângulo de câmara. Afinal, no grande circo da vida pública portuguesa, ser a Xuxa ou o boi de carga que puxa a sua nave espacial é uma diferença meramente semântica, um detalhe no contrato que se assina com a efemeridade. E que não Kine depressa, porque o espectáculo, mesmo o mais confrangedor, tem de continuar até que o último espectador adormeça com o comando na mão.

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Editor Executivo. Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

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