Francisco Pinto Balsemão pereceu a 21 de Outubro de 2025. O país perdeu um homem que viveu entre o jornal e o gabinete, entre o poder e a crítica ao poder, e que nunca deixou de ser, até ao fim, uma figura difícil de classificar. Chamavam-lhe fundador, primeiro-ministro, empresário, patrão da imprensa, barão, liberal, conspirador, homem de mundo. E todos tinham, de certo modo, razão.
A sua biografia é um mapa da democracia portuguesa: ajudou a fundar o PSD, foi primeiro-ministro nos anos conturbados que se seguiram à morte de Sá Carneiro, e criou o Expresso, depois a SIC, erguendo um império mediático que moldou a linguagem pública do país. Mas se a História só se fizesse de homenagens, não seria História: seria propaganda. E Balsemão, com tudo o que foi e tudo o que suportou, não mereceria ser reduzido a isso.
Falta de carisma, poder demasiado
As críticas acompanharam-no desde o início. Houve quem nunca lhe perdoasse o ar reservado, o estilo analítico, a falta de chama num tempo que pedia carisma e punhos sobre a mesa. No Governo, entre 1981 e 1983, enfrentou mais punhais do que moções: traições políticas, demissões súbitas, fugas de informação, e a erosão de uma coligação que se desfez em frente das câmaras. Marcelo Rebelo de Sousa demitiu-se, Freitas do Amaral afastou-se, Cavaco afiava o machado. E Balsemão, que acreditava na decência como método de governação, saiu como entrou: discreto, cansado, e fiel à ideia de que o poder não devia ser teatro.
Depois veio o império. O Expresso tornou-se sinónimo de jornalismo moderno e a SIC, de televisão democrática. Mas a distância entre dono e editorialista, entre accionista e jornalista, foi sempre estreita. E foi aí que nasceram as maiores polémicas. Acusaram-no de confundir liberdade de imprensa com liberdade de influência, de misturar política e negócios, de personificar a tal “promiscuidade” entre o poder político e o mediático. O próprio reagia com serenidade: dizia que quem não tem poder nenhum é que deve preocupar-se. E, por ironia, foi essa serenidade que irritou ainda mais os detractores.
O outro lado
Houve também o lado secreto — ou, pelo menos, o lado fechado. O nome de Balsemão figurava há décadas na lista dos participantes do Grupo Bilderberg, essa confraria discreta de elites que alimenta tantas suspeitas e teorias. Para uns, era uma prova de prestígio internacional; para outros, a confirmação de que o país estava amarrado a uma teia de influências invisíveis. Balsemão nunca alimentou o mito nem o desfez. Limitava-se a sorrir, como quem sabe que o mistério é a melhor blindagem contra a maledicência.
Mas nem o sorriso o protegeu sempre. Foi arrastado para guerras empresariais com a Ongoing, para relatórios apócrifos que vasculhavam a sua vida privada, para acusações delirantes sobre Camarate e até para um processo de paternidade que se arrastou durante anos nos tribunais. Tudo isso faz parte da biografia que se escreve nas sombras: a que revela o preço do poder e da exposição. Balsemão sobreviveu a tudo — às perdas financeiras, às derrotas políticas, às difamações — com uma mistura de contenção e ironia. Raramente respondeu em público. Preferia deixar os outros falarem. E, enquanto falavam, ele continuava a publicar.
Com o tempo, o seu grupo mediático perdeu o brilho de império. Dívidas, crises, vendas de activos, e o lento esvaziamento de um modelo que ele próprio ajudou a criar. O Expresso deixou de ser o altar do jornalismo ilustrado e tornou-se, como o resto, um negócio em luta pela sobrevivência. E, no entanto, há algo de justo em que tenha sido assim: Balsemão viveu o ciclo completo de um ideal — o de que a liberdade vale o risco do fracasso. O seu último acto foi criar uma Fundação em seu próprio nome, para lá enfiar milhões de euros, que podiam capitalizar a sua tão prezada Impresa e livrá-la da venda de mercado a que será sujeita.
Por Fim
A sua morte encerra um capítulo da democracia portuguesa. Foi um homem de contradições, mas também de convicções. Os que o acusaram de manipular esqueceram-se de que, sem ele, muitos dos seus acusadores talvez nunca tivessem tido voz. A história de Balsemão é, por isso, também a história da liberdade de imprensa em Portugal — com todas as suas virtudes, todos os seus vícios, e toda a sua imensa complexidade.
Um pequeno apontamento pessoal: uma vez, em Tribunal, num processo idiota em que Balsemão era assistente e eu co-arguido, o ex-primeiro-ministro levantou-se e dirigiu-me palavra — acto totalmente ilegal — ofendendo-me e profetizando-me um negro futuro para mim, minha família e camaradas. Acrescentou que, pessoalmente, iria tratar de que isso acontecesse. Justo, o juiz, pregou-lhe com o malhete e ficou com multas de desrespeito em tribunal nos ouvidos, Balsemão. Nem me esqueço disso nem do ridículo episódio em que uma comissão de honra da Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas foi, perfumada e bem vestida, entregar-lhe em mão, ao Expresso, a Carteira. Coisa rara, única e nunca vista. Igualmente revoltante e medonha. Houve dezenas de protestos.
Que o corpo, que tanto sofreu, tenha o seu destino tranquilo. Que aquilo que sabia — e sabia muito — não se perca no tempo.