A morte de um propagandista de direita, de apelido Kirk, nos Estados Unidos, o Joseph Goebbels de Trump, deixou em delírio os que o deviam lamentar. Minutos depois, já as estações de televisão Newsmax e Fox News, mais do que alinhadas com Trump, vinham espetar o dedinho acusador à extrema-esquerda. E o próprio Presidente, num vídeo que muitos dizem ser IA, vinha culpar a extrema-esquerda. Nada mais emocionante do que ver um caixão ainda quente ser utilizado como púlpito, com as flores de plástico a servirem de teleponto e os soluços substituídos por gráficos a três dimensões.
O milagre da bala teleguiada
Imagino milhares de pastores evangélicos com a mesma ladainha, mortos de encontrar um culpado de um grupo radical de esquerda que tenha cometido tal atrocidade. Já os vejo de microfone em punho, a pedir vingança divina, como se Deus tivesse uma central de ‘call center’ a despachar cruzadas por atacado. Mas o Goebbels americano ainda só teve direito a umas imagens de um suspeito que aparenta andar na casa dos seus 20 aninhos. Para tiro tão limpo e certeiro, digo eu, aquilo é obra de um veterano de Guerra, no Afeganistão, no Iraque, com uma carteira de cromos enorme e um treino de se lhe tirar o caixão.
As avestruzes da História
O que estes tipos da direita pós-neocon não percebem é que a extrema-esquerda e os anarquistas se deixaram de assassinatos durante os anos 80 do século passado (quase há 50 anos) e passaram para lutas mais irritantes, mas menos ad hominem. Querem um exemplo? O anarquista moderno não carrega uma pistola, carrega um ‘router’ e uma senha de Wi-Fi capaz de derrubar a bolsa de valores de Des Moines. Mas, como quem não lê História transforma a realidade em desenho animado, preferem acreditar que Lenine ainda anda de caçadeira pelas ruas de Detroit.
Sabotagens de veludo
Mais: pela Europol, em 2019, foram registados 26 atentados de extrema-esquerda na Europa, nenhum dos quais causou mortes. Os grupos privilegiam acções simbólicas, sabotagens e ciberataques, mantendo uma retórica anti-imperialista e anticapitalista. Chamem-me louco, mas não é o mesmo que rebentar com um carro-bomba à porta de um supermercado em Atlanta. É mais parecido com roubar o Wi-Fi do vizinho ou desligar os semáforos numa cidade de província, coisas que irritam mas não levam ninguém ao cemitério — excepto, talvez, os cardíacos em fila no trânsito.
O funeral do bom senso
Assim o é há 24 anos, depois do 11 de Setembro de 2011, que levou a profundo debate entre a extrema-esquerda e anarquistas mundiais. Não mais atentados à vida, decidiram eles, entre um cigarro enrolado à pressa e uma tese de mestrado sobre a luta de classes no TikTok. Se soubessem história e antropologia, os povos tinham uma dificuldade maior em engolir tanta peta. Mas como já nem sabem distinguir uma ‘fake news’ de uma homilia dominical, resta-lhes engolir tudo com o mesmo molho rançoso: a conspiração.
A apoteose do disparate
O Goebbels de Trump morreu, e a extrema-direita americana encontrou na sua morte uma nova Disneylândia do terror, completa com fogos de artifício, mártires instantâneos e vídeos falsamente ungidos pela inteligência artificial. A conclusão, portanto, é óbvia: se um homem foi alvejado em circunstâncias misteriosas, a culpa é sempre do inimigo invisível. Nada mais coerente do que culpar a extrema-esquerda por um crime que, ao que tudo indica, poderia ter sido obra de um carteirista desempregado com boa pontaria. E, no fim, resta-me louvar o verdadeiro milagre: transformar o cadáver de um propagandista em combustível de campanha, sem que o cadáver tenha direito a descanso — ou, pelo menos, a uma televisão desligada.