Universidade da Beira Interior alerta para riscos graves na utilização da Inteligência Artificial no jornalismo. Especialistas denunciam campanha de manipulação que atingiu figuras da imprensa portuguesa.
A crescente utilização da Inteligência Artificial (IA) no jornalismo está a gerar sérias preocupações quanto à credibilidade da informação, à transparência na comunicação com o público e ao risco de manipulação das mensagens veiculadas. Um estudo da Universidade da Beira Interior (UBI) revelou que esta nova ferramenta tecnológica levanta questões estruturais profundas sobre a prática jornalística, a responsabilidade editorial e a confiança do público nos media.
Entre os casos identificados, destacam-se manipulações envolvendo imagens e vozes de jornalistas bem conhecidos do público português, como Pedro Benevides (TVI), Clara de Sousa (SIC) e Sandra Felgueiras (TVI). As suas imagens foram utilizadas de forma abusiva, através de sistemas de IA, para disseminar mensagens falsas sobre vacinas contra a Covid-19 ou promover produtos alegadamente “milagrosos” para problemas de saúde.
Desinformação com rosto conhecido
Pedro Benevides foi um dos primeiros a denunciar publicamente a utilização indevida da sua imagem. Na sua conta de Instagram, o jornalista alertou para um vídeo manipulado onde aparece a apresentar uma peça noticiosa fictícia, com declarações falsas sobre vacinas da Pfizer e da Moderna. As frases atribuídas no vídeo são alarmantes: “As vacinas contra a Covid-19 são mortais” e “os fabricantes forneceram substâncias não testadas e perigosas para a saúde”.
O vídeo, que já tinha ultrapassado as 50 mil interações entre ‘likes’ e partilhas no momento da denúncia, mistura imagens reais do jornalista com excertos alterados, de forma a conferir autenticidade à mensagem manipulada.
Clara de Sousa também foi visada numa campanha semelhante. A jornalista da SIC denunciou nas redes sociais a circulação de um vídeo editado onde aparece a entrevistar um médico que promove um produto chamado DiaformRx, apresentado falsamente como uma cura definitiva para a diabetes. “O vídeo é falso, mas foi editado para parecer verdadeiro”, alertou a jornalista.
Sandra Felgueiras, também da TVI, não escapou a este tipo de ataque. No seu perfil oficial, classificou estas manipulações como crimes e reforçou a necessidade de um uso ético da Inteligência Artificial: “A Inteligência Artificial tem muitas vantagens desde que usada por pessoas com escrúpulos”, sublinhou.
Duplo ataque à confiança pública
De acordo com Inês Narciso, especialista em desinformação e investigadora doutoranda no ISCTE-IUL, este tipo de manipulação representa um “duplo ataque”. Por um lado, procura-se minar a confiança do público nas instituições e nos media tradicionais. Por outro, explora-se a credibilidade associada aos jornalistas para conferir verosimilhança às campanhas de desinformação.
“O panorama atual, em termos de acessibilidade a ferramentas de manipulação, está gravemente comprometido. Nunca foi tão fácil e barato lançar campanhas de larga escala com impacto reputacional contra figuras públicas”, afirmou a investigadora à agência Lusa.
Inês Narciso defende que as redes sociais e plataformas digitais não estão a agir com eficácia na deteção e remoção destes conteúdos manipulados. Critica ainda a associação incorreta que frequentemente se faz entre a remoção de conteúdos falsos e a censura: “Trata-se de proteger a integridade da informação, não de limitar a liberdade de expressão”.
Um alerta para o futuro do jornalismo
O estudo da Universidade da Beira Interior destaca que a crescente presença da IA no espaço mediático impõe desafios éticos e técnicos à prática jornalística. Os investigadores sublinham a necessidade de regulamentação, formação específica para jornalistas e maior transparência por parte das plataformas digitais.
Para alguns especialistas, este fenómeno poderá até provocar um efeito inverso ao pretendido pelos autores da manipulação, contribuindo para um regresso do público às fontes tradicionais de informação, como a rádio, a imprensa escrita e a televisão, consideradas mais seguras e fiáveis.
A manipulação de conteúdos jornalísticos com recurso a Inteligência Artificial está a transformar-se numa ameaça real à integridade da informação em Portugal. O recurso à imagem de profissionais de comunicação para espalhar desinformação representa um atentado à liberdade de imprensa, à confiança pública e ao próprio conceito de verdade. A resposta das autoridades, das plataformas e do próprio setor jornalístico será crucial para enfrentar este desafio.