A cultura, no nosso Portugal, é um bicho curioso. Tem mais apoios que o alheio do vizinho e mais subsídios que os ossos da Santa Alforreca, mas, ainda assim, vive num estado perpétuo de precariedade aristocrática, qual D. Juan que só se alimenta de tapas e de ginja.
O que me recorda, com uma melancolia que não cabe no peito, a situação do «Jornal de Letras, Artes e Ideias», a mais fina das publicações periódicas para um certo tipo de gente que usa sapatos de camurça. Essa, que vive de subsídios culturais, e que agora, pobre JL, está atolado num mar de problemas, daqueles em que a maré sobe e a conta-corrente desce.
Ai que nos safamos
O seu director, José Carlos de Vasconcelos, também conhecido como «O Poeta de Freamunde», o mesmo que se celebrizou nos saraus mais dionisíacos do nosso país, aquando o recitar do seu poema «A dita dura / A dita dura / A dita dura», está, segundo reza a prosa e o verbo, a fazer um esforço hercúleo para se apropriar do título, que, como se sabe, pertence ao grupo Trust in News, que, por sua vez, está mais falido que o
stock de ideias dos nossos políticos. E é aqui, no momento da decisão, que se verifica o pequeno drama de Zé Carlos: «A dita mole». Sim, caro leitor, porque uma coisa é a lírica, outra, bem diferente, é o balanço da conta-corrente.
O Subsídio da Estética do Desastre
Estou certo que o leitor, sendo um ser de requinte e de bom gosto, é assíduo comprador e leitor deste jornal. Sejamos francos, o papelito só consegue chegar às bancas porque todos nós, através do Governo, com os nossos impostos, lá enfiamos os custos para que Zé Carlos ainda tenha onde trabalhar. E que os deuses da arte e do pensamento não lhe percam o rasto.
Assim, com a bolsa recheada pelos nossos sacrifícios, Zé Carlos pode andar a tratar de assuntos interessantes para o homem comum. A saber: ensaio que publicou há uns tempos, intitulado «O estruturalismo na pega do bezerro de Paulo Núncio», uma obra-prima que, dizem os maldizentes, era lida de uma ponta à outra pelo seu autor, sem se perceber se a prosa era feita de vogais ou consoantes.
O Perfume das Papoilas Saltitantes
Esta vetusta personagem e veneranda figura, quer agora levar esse seu concorrente direto do «Correio da Manhã» à miséria. E pega no JL e leva-o para casa, pago pelo ministério e com temas tão interessantes como «Os Prolegómenos à lírica do Homem do Leme», enquanto jovens papoilas saltitantes, cultíssimas e adoradoras do Bom e do Mao, andam a esvoaçar qual musas de banheira de João César Monteiro — num tourbillon de futilidade e de vaidade. O que isso tem a ver com o nosso drama? Tudo. Porque, enquanto uns se dedicam à alta cultura, outros, mais humildes, dedicam-se à arte de contar tostões, e, já agora, à de os distribuir aos BFF.
A Fábrica de Nuvens para um Dia de Sol
É neste cenário de comédia de costumes, mais ou menos refinada, que percebemos o verdadeiro sentido da palavra “cultura” em Portugal. Mais do que uma manifestação de pensamento ou arte, é uma espécie de fundo de maneio para os amigos, uma espécie de estufa de protecção para um determinado grupo que se acha superior a tudo o resto e que precisa de ser alimentado pela mão visível, como se fosse um recém-nascido. Para este grupo, a insolvência é só um lapso técnico, um momento de reflexão que os fará mais fortes e endinheirados no futuro.
O Estruturalismo do Descalço
E assim, o “Poeta de Freamunde”, com a sua lírica de atar, mas com a mão no bolso do contribuinte, continua a sua marcha triunfal, porque, como dizia o pseudo-filósofo alemão, Gunther von Krapfen, na sua ‘Ode ao Vazio Estruturalista’: “O homem sem carcanhol é um cão sem ossos”. O que, como se percebe, é uma forma erudita de dizer que o dinheiro, neste nosso país, é o verdadeiro motor da cultura.
No fundo, o que o nosso caro José Carlos de Vasconcelos nos está a dizer, com esta sua epopeia financeira, é que a cultura, para sobreviver, não precisa apenas de talento, nem de leitores, nem sequer de temas interessantes. Precisa apenas e só de um bom advogado, um bom lobista e, claro, um governo amigo, disposto a abrir os cordões da bolsa, porque, como se sabe, a cultura é o único investimento que nunca se perde, nem que seja só para a reputação de quem manda. A dita mole é apenas um detalhe, uma nota de rodapé na gloriosa biografia de quem vive da palavra amiga, mas perdida.