O meu querido João Villalobos, personalidade afável, bem conhecida pela capital, queixa-se hoje do preço das bainhas numa rede social, como se fosse a queda da República ou a morte da última sardinha no Atlântico. Uma bainha custava 1400 paus e agora passou para sete euros, o que é inominável, um escândalo em linha recta com os escândalos de Estado. Um insulto, uma fastiosa despesa aumentada em zero, a que só falta o selo branco da Assembleia da República para se tornar imposto.
Agrafador, meu amor
Mas pensei imediatamente na nossa juventude, naquelas saídas de casa dos pais para as nossas casas, T0 em lugares esconsos no Bairro Alto ou na Graça, em que, compradas as calças, usávamos dois métodos para fazer bainhas. Sem gastar muito, e sem nunca suspeitar que um dia pagaríamos mais pela bainha do que pelo almoço. A primeira era com o magnífico agrafo, esse bisturi proletário: dobra para dentro, agrafa à volta, pinta-se de azul e aí estava uma bainha para 48 horas — não fora um tropeção ou uma cilada da calçada, onde Lisboa se vinga dos pobres. Era a democracia feita metal.
Fita-cola transcendental
A outra, mais demorada, apareceu no advento da fita-cola que colava dos dois lados, milagre de laboratório e desespero das costureiras do regime. Dobrava-se para dentro, já com a engenhoca feita, e rezava-se para que o térilene aguentasse heroicamente a fita, como um Hércules de poliamida. Se preciso fosse, uma sopradela de secador de cabelo ou o ferro de engomar sem vapor e, depois, um congelador por um pedaço — uma liturgia doméstica em três tempos, missa breve para fiéis de calças compridas. Uma maravilha que saía a 100 paus (um pintor), o que se traduz por cinquenta cêntimos, valor que nem a consciência compra.
Segredos de meia bainha
Sei onde hoje se fazem bainhas a três euros e meio, mas não digo, porque cada homem tem direito ao seu segredo de Estado e ao seu esconderijo fiscal. Não revelo, não denuncio, não assino compromissos com a NATO das agulhas. É cá coisa de segredo, tão íntimo como a lista de senhas do Multibanco. E aprendi a “fazer” umas, muito mal amanhadas, por meio de um livro da Verbo, que ensinava tudo para a casa, desde podar roseiras até construir um reactor nuclear com latas de atum. Ele ensinava, eu é que não aprendia, porque a pedagogia não resiste à incompetência.
A amizade alfaiateira
João, em apertos, telefona! Não te levo nada e já tenho um agrafador melhorzinho e uma daquelas canetas que pintam plástico e metal, a modernidade do improviso. Não se vai notar nada, porque em Portugal o que não se nota é automaticamente oficial. E faço isso de borla, apenas para clientes seleccionados, categoria onde cabem os amigos e os crédulos. O país das bainhas é, afinal, o país inteiro: remendado, dobrado para dentro e agrafado à pressa, sempre à espera que alguém repare na costura mal feita.
O epitáfio do tecido
Que ninguém se engane: não é das bainhas que falo, mas de tudo o resto. De como sete euros parecem a eternidade quando antes eram 1400 paus, e de como nos habituámos a medir a vida em pontos de agrafo e sopros de secador. A bainha é somente a metáfora doméstica de um país inteiro: se dobra para dentro, cola-se com fita, mete-se no congelador e espera-se que dure até ao próximo tropeço. E, como sempre, no fim, há uma factura a três euros e meio que ninguém mostra — segredo nacional, espécie de património imaterial da desarrumação.
Conclusão dobrada e cosida
No fundo, é simples: Portugal não tem bainhas, tem remendos. Somos um tecido mal-acabado, com costuras que se desfazem no primeiro degrau. E talvez seja isso que nos une — o saber que, se tropeçarmos, não foi culpa da calçada, foi culpa do agrafo que falhou. Um país inteiro suspenso no arame do improviso, vestido de calças dobradas, a desfilar orgulhoso como se tivesse o corte perfeito de Paris.