Abriam-se os céus — ou, mais precisamente, as abóbadas fumegantes da Capela Sistina — quando os cardeais, num acto que oscilou entre a iluminação divina e o desespero táctico, elegeram Robert Prevost, agora Leão XIV. Um Papa norte-americano: eis o paradoxo que faria São Pedro tropeçar nas próprias chaves. A Igreja, essa veterana de dois milénios de realpolitik, decidiu que a melhor forma de combater um demagogo de cabelo pintado e Bíblia de plástico era criar o seu antítipo: um cardeal de Chicago, terra de máfias e sociólogos marxistas, baptizado com o nome do Papa que ousou, em 1891, citar Marx antes de Marx estar na moda
Leão XIII, cuja Rerum Novarum ecoou como um Manifesto Comunista em surdina, terá sorrido no seu mausoléu. A encíclica que abraçou operários e assustou barões foi, afinal, um código secreto para ressuscitar a esquerda católica. O que importa aqui é que o Vaticano, ao resgatar Leão do baú dos papas reformistas, pratica hoje uma alquimia inversa: transforma ouro em chumbo, para depois fingir que o chumbo sempre foi ouro. A eleição de Prevost é uma dança sagaz — ou um facto desesperado — dessa velha jogada.
Há quem veja neste Leão XIV um maquiavelismo eclesiástico. É pouco. A Igreja, mestra na arte de sobreviver a si mesma, adoptou a estratégia do ouriço de Schopenhauer: aproxima-se dos EUA para os espetar com as próprias espinhas. Prevost, bispo que denunciou a “teologia da prosperidade” evangélica como “heresia do capitalismo mascarada de sermão”, é o cavalo de Tróia perfeito. Enquanto os telepastores vendem milagres como quem vende vitaminas do Goucha, ele oferece crucifixos com subtítulos de Gramsci. Uma actualização teológica? Não. Uma operação de falsa bandeira celestial.
Mas cuidado: esta eleição não é um acto de fé. É uma jogada de xadrez onde o bispo se move como cavalo, saltando sobre a decadência ocidental. O Vaticano percebeu que os EUA, esse império em modo créditos finais, já não se conquistam com missionários, mas com memes. Enquanto os evangélicos apelam ao êxtase das massas com jargão de “formadores de negócios start-up”, a Igreja Católica contra-ataca com a estética do vintage revolucionário. Leão XIV é o Papa hipster que bebeu comércio justo com Bento XVI e ouviu “Rage Against the Machine” nos claustros.
Resta saber: pode um cardeal de Chicago, por mais astuto que seja, reacender a chama socialista numa Igreja que há décadas namora com neoliberais em surdina? A resposta está numa anedota soviética: “O comunismo é o caminho mais longo entre o capitalismo e o capitalismo.” Leão XIV, ao evocar Leão XIII, não propõe um regresso às origens — propõe a instalação de um sistema operativo pós-moderno. A Rerum Novarum 2.0 não virá em pergaminho, mas em doses de redes sociais, assinada com a marca: #OcupemoGolgota.
Os conservadores, é claro, tremem como diabruras num exorcismo. Prevost, afinal, é o pesadelo que une Ayn Rand e Madre Teresa: um pragmático que cita Foucault entre ave-marias. E aqui reside o génio perverso da manobra: ao eleger um Papa que fala a língua dos millennials (ainda que com sotaque de seminarista), a Igreja não trai a tradição — actualiza-a. Como diria Quevedo, “nada é mais conservador que uma revolução bem sucedida”.
O epílogo? Em aberto. Leão XIV poderá ser o Papa que reconquistou a América para Roma, ou o último acto de uma instituição que troca mitras por bonés de Che Guevara. Seja como for, a lição é clara: quando até o Vaticano joga xadrez 4D com a História, resta-nos a dúvida: Será esta a aurora de uma nova igreja socialmente consciente — ou somente a mais refinada simulação de um publicitário celestial?
Como na fábula de Kafka em que um cardeal se transforma em pombo para provar que Deus existe, ficamos a pairar. E nesse voo, suspensos entre o riso e o desespero, descobrimos a verdade mais incómoda: a Igreja, afinal, sempre soube que a melhor forma de salvar as almas é vender-lhes um espelho.
(Crónica escrita ao som de gregorianos sampleados por DJs de Berlim. Para uso e abuso de teólogos em crise existencial.)