Cerca de 1,2 milhões de votos expressos nas últimas eleições legislativas em Portugal não se traduziram na eleição de qualquer deputado, representando 20,4% dos votos válidos. A conclusão surge num estudo recente conduzido pelo matemático Henrique Oliveira, do Instituto Superior Técnico, que alerta para uma desigualdade profunda na forma como o sistema eleitoral português representa os eleitores.
Intitulado “Os votos sem representatividade”, o estudo actualiza uma análise anterior sobre as eleições de 2024, agora incluindo os votos dos círculos eleitorais da Europa e Fora da Europa. Ao todo, somaram-se 1.263.334 votos sem qualquer impacto na composição do Parlamento, um fenómeno que atinge com particular intensidade os círculos mais pequenos, sobretudo no interior do país e entre os emigrantes.
“O estudo mostra que existe uma enorme desigualdade territorial e na emigração entre os grandes e os pequenos círculos eleitorais. Em Lisboa, é quase certo que um voto resulta na eleição de um deputado, enquanto em Portalegre isso só acontece para duas forças políticas, no máximo”, explicou Henrique Oliveira à Lusa.
De acordo com os dados recolhidos, em Portalegre, 49,5% dos votos não elegeram qualquer deputado. Situação semelhante ocorre em Beja (48,4%), no círculo da Europa (46,8%) e Fora da Europa (45,6%). Em contraste, em Lisboa, cerca de 90% dos votos resultaram em mandatos parlamentares, enquanto no Porto a percentagem foi de 84%.
“Quase metade dos votos de Portalegre não têm qualquer consequência na eleição de deputados, enquanto o voto em Lisboa ou no Porto é amplamente eficaz. Isto configura uma desigualdade democrática inaceitável: o voto de um cidadão no interior ou no estrangeiro vale significativamente menos do que o de alguém num grande centro urbano”, frisou o autor do estudo.
A investigação também analisou o impacto do sistema eleitoral nos diversos partidos. Os grandes partidos, como o PS, a AD e o Chega, são os que conseguem transformar uma maior percentagem dos votos em mandatos. O PS, por exemplo, converteu 92,4% dos seus votos em deputados, seguido da AD com 92% e do Chega com 90,7%.
Já os partidos mais pequenos enfrentam grandes dificuldades. O PAN precisou de 126.805 votos para eleger um deputado, enquanto o PS conseguiu eleger um deputado com apenas 23.237 votos. “O PAN precisou de cinco vezes mais votos do que o PS para alcançar o mesmo resultado”, sublinhou Henrique Oliveira, que considera estes dados “chocantes”.
O matemático atribui grande parte desta distorção ao método de conversão de votos em mandatos — o método d’Hondt — que, embora matematicamente transparente, favorece os partidos com maior expressão eleitoral e penaliza os mais pequenos. No entanto, reforça que as desigualdades entre regiões não podem ser justificadas pelo método, mas sim pela actual configuração dos círculos eleitorais.
Henrique Oliveira defende soluções para corrigir o desequilíbrio territorial, como a criação de um círculo nacional de compensação ou o agrupamento de círculos do interior, de forma a reforçar a representatividade. “Por exemplo, poderíamos juntar o Alentejo e o Algarve num só círculo que elegesse nove ou dez deputados. Isso daria mais poder efectivo ao voto nestas regiões.”
Quanto à correção da desigualdade entre partidos, apontou o modelo israelita como exemplo, que utiliza um único círculo nacional, embora reconheça que tal modelo tornaria improváveis as maiorias absolutas em Portugal.
“Temos um défice democrático que se manifesta através da subvalorização do voto no interior e entre os emigrantes. O sistema precisa de ajustes que permitam uma representação mais justa e equitativa de todos os cidadãos, independentemente da sua localização geográfica”, concluiu o autor do estudo.
Este trabalho surge num momento em que várias vozes do interior do país têm manifestado crescente insatisfação com a forma como o sistema político representa os seus interesses. Exemplo disso são os viticultores do Douro, que chegaram a ameaçar boicotar as eleições, alegando abandono por parte dos decisores políticos.