Havia um lascivo fascínio pela capa de açúcar que vinha ao de cima, na marmelada da minha avó paterna. Era aquela posta numas terrinas fundas, guardadas no pico do Everest: a prateleira mais alta da dispensa da casa. A marmelada vinha poMarmelada e o Lincer estes tempos e cheirava sempre por toda a casa, pela varanda, pelas ruas – mal saia de casa de meus pais no toyota azul claro já sentia o fumegar marmeleiro. A minha avó punha um papel vegetal em cima, que devia ser para qualquer coisa muito útil. Para mim era uma fechadura inadmissível.
O roubo da marmelada estava impedido a sete chaves de papel. O que valia, naqueles tempos, é que nem sempre o meu avô confiava nas prateleiras que, desconfio, ele mesmo fez. Aliás, dele herdei o enorme talento para a bricolage. Por isso as terrinas brancas pesavam nas prateleiras qual edição encadernada do Guerra e Paz, abaulando a solidez das tábuas aquela alquimia de marmelo e açúcar.
Vinham então parar cá abaixo, à bancada, as terrinas sossegaditas, mas sedutoras. “Ainda estão quentes”, justificava a minha avó: “Não ponhas já, ai!”, bradava ao meu avô, naquela voz de comando que o Manuel nem imaginava poder desobedecer.
No quarto das minhas tias eu juro que ouvia, do poster, o lince dizer: “vai lá… rapaz… vai lá… só assim me salvas na Malcata, se meteres a colher…”. Eu ia, que a um lince de papel nada se recusa.
Há anos que não vejo o papel vegetal a fechar as terrinas, meio húmido e transparente, a levantar nas pontas, o círculo irregular cortado à tesoura, o som do descolar crepitante, vegetal, do doce. Mas tenho aqui mesmo, aqui nesta parte da memória, todo o palato necessário para a saudade enorme. Mais deles, da minha Mimi e do meu Almeida, do que do fruto a ferver.
Ingrato, nunca dei colher da marmelada ao Lince.