A gente percebe a dor arrepiante, o cansaço absoluto. Afinal, a fronteira biológica não é ultrapassável e a consciência ainda não se enfia na “nuvem” para que o corpo seja descartável e a alma, não.
Uma pessoa divide-se: lê os testemunhos e sabe que todos são sentidos e verdadeiros. A morte pode ser libertadora. Só que os defensores do Nim, como eu, somos levados ao Não por causa, precisamente, da natureza humana. Ou da meia-idade.
A verdade é que existe uma enorme diferença entre o suicídio assistido e a eutanásia – a tal “boa morte”. No suicídio assistido a gente prepara tudo para o outro poder morrer, mas é o outro que decide. E, sobre isto, nada a dizer. A vida humana é inviolável, é certo. Mas é também propriedade privada de quem a tem. A criminalização do suicido faz sentido e não faz.
Ao parecer ambígua, a lei e a sociedade mostram que compreendem as mulheres e homens. Se há quem consiga matar por amor, para acabar com o sofrimento de quem ama, há quem nem sequer consiga pensar nisso – uma barreira invisível impede o pensamento de entrar na cabeça, porque tirar a vida a quem é a nossa vida, também, é insuportável.
O Nim defende que uma sociedade composta por pessoas muito conscientes, com o bem e o mal muito definidos, com os cidadãos cultos e responsáveis, não discute o tema: seria natural dizer “sim”.
Mas o Nim defende, apesar de tudo, que nos cheira ainda a sociedade mal formada e excitada com o negócio. O mundo, hoje, é um gigantesco Oliveira de Figueira. Por isso, onde uns vêm amor e dedicação, piedade e bondade, outros verão imediatamente negócio e herança, lucro e fábrica.
É neste ponto que bate a boa intenção da lei – a incontornável natureza contra a persistente falta de bom senso.
A humanidade já mata a esmo, sem pruridos, os jovens saudáveis e brilhantes. Mata-os por causas tão estúpidas como a ideia de deuses, o ouro negro ou uns hectares onde um rei antigo dormiu por acaso.
Por isto tudo, havia de ser interessante saber se o conhecimento apriorístico da ética actual da sociedade, neste caso a portuguesa, já abraçou a tal kantiana “metafísica dos costumes” que permita a Eutanásia sem considerações ou restrições morais – e assim, aceitável.
Ora, a questão do condicionamento psicológico do doente por terceiros, quando levado a optar pela prática da eutanásia, parece pouco respondida. A mesma frase sobre o assunto pode ter interpretações diversas, mudando-se os actores.
Um pai que oiça sobre o assunto de um filho, estando este exausto de o cuidar, depois de perder o emprego, depois de cair em esgotamento, aceitará a ideia de eutanásia não apenas como a sua libertação da dor mas, também, como algo altruísta.
Já a mesma frase dita por um enfermeiro a um paciente terminal mas teimoso na sua crença moral e religiosa, de que a vida “a deus pertence”, pode causar enorme conflito e prejuízo ético.
Se pensarmos que a autoridade moral tácita que a sociedade atribui aos médicos é superior à que dedicamos uns aos outros – como é natural, por causa do desequilíbrio de poder sobre o bem estar, um está doente e o outro tem o poder de curar -, seria sensato proibir a eutanásia como tema de conversa nos lugares clínicos?
Não há resposta simples.
Se, no aborto, estou contra, por considerar que o papel do pai estava menorizado, mas votei “sim”, neste caso alinho com as razões invocadas pelo Partido Comunista Português. Muito longe daquelas do CDS ou de Cavaco, o PCP percebeu, porque sabe o suficiente sobre natureza humana, o que está em causa.
A proposta de Os Verdes, a mais cautelosa, é, mesmo assim, curta. A discussão é, no entanto, inevitável. A Eutanásia “tranquila” e “boa” é consequência da evolução tecnológica e ética. Um dia, será comum e os costumes dirão “sim” sem hesitações.
Esse dia, porém, parece ainda não ter nascido para todos. Por isso, porfiemos na ideia, até esta se aguentar a todas as nossas antíteses. E municiemos todas e todos com os melhores cuidados e, repito, pensemos antes em descriminalizar o suicídio assistido, que me soa mais consensual e, acima de tudo, mais consoante da ética vigente.