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O Adufe De Bergerac

Artigo de Opinião de José de Alenquer Escrever é resistir sem gritar.

A bravura perdeu o nariz. A encenação continua.

Baseado na obra “Cyrano de Bergerac”, de Edmond Rostand

Em tempos de sombra e simulação, Idanha ergue-se como palco onde as palavras já não servem para dizer, mas para disfarçar. Como no teatro lírico de Cyrano de Bergerac, onde um homem de pena afiada escrevia versos para outro conquistar os aplausos, também aqui se desenrola um drama em três atos: o do político que se esconde por detrás de chefias obedientes, do filho que fala com a voz do pai, e da vila que assiste, em silêncio, ao esvaziar da sua identidade.

A bravura, outrora símbolo de homens de rosto descoberto, agora desfila disfarçada de cerimónia, adufe em riste, enquanto os verdadeiros autores da narrativa se ocultam nos bastidores, entre gabinetes e conluios. Já não é a arena o centro do sacrifício, é o município. Já não se combate touros bravos, combatem-se consciências adormecidas com eventos e homenagens de encomenda.

Nesta raia beirã, onde as pedras guardam memórias seculares, o povo já não é espectador. É figurante de um guião que nunca escreveu, mas que paga com impostos, silêncio e resignação. Cyrano, ao menos, escrevia por amor. Aqui, escreve-se por ambição, por poder, e por herança. E enquanto uns ensaiam discursos para o futuro, outros vão rasgando, em prosa crua, as cortinas do presente.

Que se levante, pois, o pano, porque o teatro continua.

Entre o Nariz e o Capote

No palco poeirento do interior português, onde os adufes já não marcam o compasso da tradição, mas antes os ritmos do favorecimento e da encenação, desenrola-se mais um ato da tragicomédia que há anos assombra a planície beirã. O cenário é Idanha-a-Nova. A peça, uma adaptação pobre, mas incrivelmente fiel, da obra de Edmond Rostand: Cyrano de Bergerac.

Lá, Cyrano ocultava a sua paixão por Roxana atrás de um nariz exagerado e de palavras empunhadas como floretes. Aqui, em Idanha, a paixão já não se esconde: expõe-se, fotografa-se, entrega-se em adufes e sorrisos cínicos. Mas os verdadeiros autores continuam atrás da cortina, manipulando diálogos, atribuindo papéis, escrevendo cenas em que os protagonistas nem sempre sabem que o são, ou fingem não saber.

Os últimos acontecimentos à volta de cerimónias tauromáquicas, símbolos culturais e eventos financiados por dinheiros públicos são mais do que episódios isolados. São fragmentos de uma peça escrita há muito, onde o herdeiro ensaia falas, as Rosanas do regime trocam olhares cúmplices, e os touros, sempre os touros, vagueiam, tal como a verdade: solta, incômoda, indomada.

O Palco e o Adufe

Na arena das emoções manipuladas, tudo começou com um gesto: um adufe entregue em mãos erradas. Um símbolo maior da identidade idanhense, batido por quem não foi eleito, exibido por quem pouco fez, e oferecido sob o olhar de quem tudo orquestra. Não foi homenagem: foi mise-en-scène.

A cavaleira Sónia Matias talvez tenha merecido o tributo. Mas o que se encenou naquele dia não foi um tributo, foi um número, uma peça improvisada onde os atores secundários se moveram com a disciplina de figurantes treinados. Não estavam lá os representantes do povo. Estavam lá as peças do xadrez privado. Uma chefe de divisão, não em nome do serviço público, mas da fidelidade pessoal — Elza Gonçalves, acumula o papel de gestora de contas com o de aspirante à presidência da câmara, abençoada pela mão régia de Jacinto. E outra senhora, discretamente proprietária do terreno onde repousa uma fábrica de queijo presidencial.

Ambas sorriram. Ambas estiveram onde deviam. Ambas não disseram nada, e disseram tudo.

Rosanas do Regime

Na peça de Rostand, Roxana é o ideal, a musa. Em Idanha, o ideal foi substituído pelo interesse. Não temos uma Roxana, temos duas Rosanas de conveniência.

Elza Gonçalves, outrora sombra discreta das finanças municipais, agora rosto visível da sucessão socialista em Idanha, surge entre colunas e cortinas como uma personagem de tragicomédia: veste números, mas declama promessas. Aparece em todos os eventos ao lado do presidente, age não como servidora pública, mas como candidata assumida. Já não dirige orçamentos, dirige olhares. Já não presta contas, presta vassalagem. A outra senhora, discretamente ligada a interesses de bastidor, surge sempre que o teatro exige presença feminina para reforçar o argumento de uma gestão próxima do povo.

Mas ambas falam por outros. Ambas representam o que não são. Ambas existem apenas para sustentar a ilusão de que tudo é espontâneo, natural e legítimo.

A encenação exige rostos. E estas duas fornecem os rostos certos, nos momentos certos. Figurantes de um teatro onde a intriga é o argumento principal.

Bergerac e o Benjamim

Tal como Cyrano escrevia cartas de amor para Cristian encantar Roxana, também em Idanha se escreve um guião para ser declamado por herdeiros. E o jovem António Gaspar Moreira, filho do presidente Armindo Jacinto, começa a ganhar palco, palavra e presença.

Não foi por acaso que discursou na palestra “Tauromaquia na Raia Beirã”. Não foi coincidência que o tema lhe servisse de pedestal. E não é ingénuo o modo como o vemos participar em projetos e causas supostamente apartidárias, mas politicamente úteis. Fala-se em nome da cultura, mas escreve-se para o futuro.

Ele é o Cristian desta peça. O rosto jovem, o verbo treinado, o dente perfeito. Mas por trás, alguém segura a pena. Alguém dita o tom. Alguém ensaia, repete e corrige.

Fanfarra de Silêncios

Na música, o silêncio é tão importante como a nota. E em Idanha, o silêncio de João Abrantes tornou-se uma sinfonia de ausência.

Depois do terramoto literário de “As Póstumas Memórias do Fantasma de Idanha”, o maestro calou-se. Recolheu-se às sombras, onde os sons não chegam. Mas agora, anuncia-se o seu regresso: o próximo evento tauromáquico que celebra os 10 anos de Idanha como Cidade Criativa da Música.

Ironia das ironias.

A música, afinal, é usada como cortina de fumo para mais uma corrida de touros. A Filarmónica Idanhense — que irá ser homenageada, como ferramenta de campanha. O maestro, como peça de museu reabilitada para legitimar mais uma homenagem vestida de neutralidade.

Quem tocará, quem escutará, quem comporá o tom? Resta saber se João Abrantes voltará a reger, ou apenas a figurar.

Os Touros Soltos e o Texto Escondido

Enquanto os adufes batem, os touros continuam soltos. No passado, mais de 250 animais bravos vagueavam pelo concelho. Acidentes, destruição, um homicídio, e ainda assim, nenhum guião foi escrito para resolver o problema.

Os touros são o espelho da governação: selvagens, impunes, perigosos, ignorados.

A governação em Idanha é uma espécie de romance por encomenda, escreve-se o que convém, apaga-se o que dói, repete-se o que funciona. Os touros podem já não continuar à solta, mas os conluios, os silêncios cúmplices e os favores reciclados, esses permanecem. A única diferença é que os touros não fingem ser outra coisa. Os homens, sim.

A Caneta e o Capote

No teatro de Cyrano, a bravura era intelectual. Aqui, a bravura serve de cortina. O adufe tornou-se capote. O discurso, faena. A cerimónia, tourada.

Enquanto o presidente distribui símbolos, a chefe de divisão aparece em palco, o filho discursa em eventos públicos, e as estruturas da câmara promovem candidatos ainda não anunciados, mas já ensaiados, o povo assiste, cada vez menos, cada vez mais descrente.

Os mesmos nomes, os mesmos rostos, os mesmos aplausos ensaiados. Já não é necessário saber tourear, basta saber sorrir, agradecer e aparecer na fotografia certa.

Mas longe das bancadas, há quem escreva. Há quem aponte. Há quem diga o que muitos pensam, mas poucos ousam repetir.

O Último Ato

Não foi uma homenagem. Foi uma investidura. Não se celebrou a cultura, legitimou-se a estrutura. Chefes de divisão transformaram-se em sacerdotisas de um culto político onde a liturgia é feita de sorrisos programados e entregas simbólicas. Os palcos são pagos com dinheiros públicos; os aplausos, com a dignidade da terra.

Idanha não precisa de herdeiros com discurso ensaiado nem de figurantes escolhidos pela cartilha do favor. Precisa de verdade. De confronto. De memória. Porque há quem se esconda atrás de adufes como escudos, mas já não ouve o ritmo da terra que finge representar.

E no fim, entre touros à solta, filhos à vista e maestros calados, percebe-se que o maior espetáculo não está na arena, está no salão nobre, na sombra dos bastidores, nos nomes que se repetem como um refrão gasto. A música toca, mas já ninguém dança. A bravura encena-se, mas já ninguém acredita.

Se Cyrano vivesse em Idanha, talvez morresse com um capote nos braços e não com uma carta. Talvez o nariz não fosse exagerado, fosse apenas desviado. E talvez as palavras que escreveu para os outros se tivessem perdido no eco de uma praça de touros subvencionada, enquanto o seu próprio nome desaparecia das atas, dos murais e das memórias.

Mas nem todos os Cyranos morrem. Alguns escrevem. Outros tocam adufe.

E um, apenas um — José de Alenquer observa. Observa tudo das sombras, com a pena em riste e o nariz bem ao alto. E quando necessário, sangra pela ponta da pena o que muitos não ousam sequer murmurar.

Porque neste teatro de província, onde todos se conhecem e poucos se enfrentam, resta apenas a palavra, e essa, ainda é livre.

Artigo de Opinião de José de Alenquer Escrever é resistir sem gritar. www.facebook.com/ojosedealenquer

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