O coração tem razões que a razão desconhece, afirmava o filósofo e cientista Blaise Pascal. A par do espírito geométrico que fundamenta o discurso científico, Pascal, atendendo às limitações e insuficiências da razão, defendia que há uma outra categoria essencial para acolher as realidades que não são puramente racionais. É o espírito de finesse, de gentileza, de finura, o qual é da ordem do coração, não da razão.
No entanto, quando o coração se sente atraído e traído pelas mentiras e traições do mundo, dos pinga-amor e quejandos, quando se deixa intoxicar pela violência e pelos vícios, convites e desafios da riqueza e do poder, quando perde o ‘controle político’ de si próprio e se desvaloriza como centro unificador da pessoa, haverá sempre quem julgue que não há nada nem alguém que o possa arrancar de tal situação… nem a razão, a ciência exata. Mas será que apenas resta ter pena destes corações escaqueirados? Camilo Castelo Branco, na sua sátira social construída a partir das três fases da vida do personagem Silvestre da Silva, e a que deu o título de “Coração, Cabeça e Estômago”, compara a queda do coração à “queda que se dá dum garboso cavalo: quem nos vê cair pode ser que nos deplore; mas decerto nos não acha ridículos”. Ora, acrescenta ele, “o cair da baixeza dos cálculos racionais é coisa que faz riso aos outros, e por isso muito comparável ao tombo que damos dum ignóbil burro. O cavalo despenha-nos e, com as crinas eriçadas, resfolga e arqueia-se com gentis corcovos. O burro, depois que nos sacode pelas orelhas, não é raro escoicear-nos”.
Sem termos de martirizar a cabeça e o estômago para além dos picos do bom senso, e para que as armas se transformem em violinos e as injustiças em solidariedade e amor, o Papa Francisco acaba de apelar ao mundo e a quem tiver ouvidos para ouvir que é preciso recuperar a importância do coração a fim de que, nesta sociedade líquida, cada vez mais narcisista e autorreferencial, cada vez mais anti coração, se possa aprender com o coração, falar com o coração, agir com o coração, pois é no coração que se “encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas”.
“Muitos – diz o Papa -, para construir os seus sistemas de pensamento, sentiram-se seguros no âmbito mais controlável da inteligência e da vontade. E, ao não se encontrar um lugar para o coração, como algo distinto das faculdades e das paixões humanas consideradas separadamente, também não se desenvolveu suficientemente a ideia de um centro pessoal, em que a única realidade que pode unificar tudo é, em última análise, o amor”. Em última análise, “poder-se-ia dizer que eu sou o meu coração, porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e que me põe em comunhão com as outras pessoas”.
O coração indica o que se pensa, se acredita, se quer realmente, o que se guarda e não se conta a ninguém, a verdade, o real, o inteiramente pessoal. No entanto, frequentemente, “esta verdade íntima de cada pessoa está escondida debaixo de muita superficialidade, o que torna difícil o autoconhecimento e ainda mais difícil conhecer o outro”. O Livro dos Provérbios exorta: “Vela com todo o cuidado sobre o teu coração, porque dele jorram as fontes da vida. Preserva-te da linguagem enganosa, afasta de ti a maledicência” (Pr 4, 23-24). São Mateus afirma que do coração “procedem as más intenções, os assassínios, os adultérios, as prostituições, os roubos, os falsos testemunhos e as blasfémias” (Mt 15, 19).
É fácil danificar e perverter o coração com aparências, dissimulações e enganos. “Para além das muitas tentativas de mostrar ou exprimir o que não somos, é no coração que se decide tudo: ali não conta o que mostramos exteriormente ou o que ocultamos, ali conta o que somos. E esta é a base de qualquer projeto sólido para a nossa vida, porque nada que valha a pena pode ser construído sem o coração. As aparências e as mentiras só trazem vazio”.
Educar o coração exige amor, disciplina, atenção, disposição do coração. Implica tocar a essência do outro e enriquecê-lo com sabedoria, verticalidade, honradez. Reclama que se use a razão, o coração, a fé e o amor para que cada um tenha uma relação sincera consigo mesmo, com Deus, com os outros e com a criação.
Nessa Carta Encíclica, embora realçar o amor do Sagrado Coração de Jesus seja o causa deste documento, Francisco fala da necessidade de se voltar a falar do coração e de se aprender a amar. Como ideal, ele aponta o Coração de Cristo, “a mais alta plenitude que a humanidade pode atingir”. Ao refletir sobre o coração de Cristo, que ele chama de “síntese encarnada do Evangelho”, Francisco pretende que todos sejamos movidos por um poderoso amor afetivo a Cristo, sendo o coração que é preciso recuperar se quisermos curar o nosso próprio coração. Só o amor de Cristo “pode dar um coração ao nosso mundo e reavivar o amor onde quer que pensemos que a capacidade de amar foi definitivamente perdida”.
Ao contemplarmos o Sagrado Coração de Jesus, nessa experiência do encontro com o amor de Cristo que nos abraça e nos salva, tudo se torna numa questão de amor, fazendo que a nossa vida esteja em saída, seja dom e encontro, relacionando-nos uns com os outros de forma saudável e feliz, dando as mãos na construção de um mundo apoiado no amor e na justiça.
Antonino Dias