O país das comadres voltou à rua. É sempre assim quando alguém, vindo do profundo espaço sideral, começa a fazer mossa sobre o poder, seja ele qual for. Desta vez, a cena passa-se entre o venerável Diário de Notícias, com cheiro a enciclopédia empoeirada, e o Página Um, nóvel publicação online, de cachas jornalísticas. Ambos liderados por profissionais com mais de trinta anos de carreira, que poderiam estar a gozar a reforma em paz ou a dar aulas de deontologia, mas preferem encenar um duelo editorial digno da Idade Média, só que com hashtags
Chuva prometida, egos em tempestade
Neste momento em que o IPMA promete chuva, os dois jornais atiram-se com culpinhas e desejosinhos, como gladiadores a lutar com esferográficas. O leitor, esse santo mártir que ainda acredita que a notícia existe, não tem nada a ver com isto. Ou há notícia, ou não há — e, se houver, que sirva para informar, não para satisfazer contas antigas. Mas o duelo vende, a zanga aquece audiências, e até os insultos são servidos como iguarias mediáticas. O público é obrigado a assistir, como quem vê “Big Brother” sem som, mas com as legendas escritas pelo inimigo.
Conte lá, mas não conte tudo
O mesmo circo repete-se na televisão. Sérgio Figueiredo quer abrir um canal chamado “Conte lá”, e a escolha do nome é perfeita: sugere que nos vai contar, mas sempre em modo “continua no próximo episódio”. A ideia é legítima: enfiar o canal na TV Cabo e tentar uns tustos — porque hoje a televisão é um grande parque de diversões onde se paga bilhete para ver jornalistas a fingirem que não estão a ler teleponto. Mal anunciou, logo surgiram os apóstolos do “não pode ser” a acusá-lo de más companhias financeiras. A ERC lá aprovou o projecto. Em Portugal, “aprovado” significa somente que os invejosos ainda não conseguiram organizar a procissão de protesto.
Micro-redacções, macro-egoísmos
Carlos Narciso alimenta há anos o Duas Linhas, uma espécie de novela em miniatura: sempre em guerras pequeninas, mas suficientemente barulhentas para ecoar num café de província. Aqui pel’OREGIÕES desejamos sucesso a todos, mas a verdade é que o jornalismo português multiplica-se em micro-projectos como Gremlins alimentados depois da meia-noite. Cada um surge armado de “independência editorial absoluta” e meia dúzia de colaboradores não pagos, que juram ser o futuro da informação. Em vez de se juntarem numa boa redacção com editores a sério, preferem dividir-se em grupelhos, como partidos de esquerda em 1975 ou clubes de ficção científica dos anos 80, em que três adolescentes discutiam se Darth Vader tinha acções na Galp.
O Marl, a Makro e a metáfora final
É fado deste povo não abdicar do pequeno poder, mesmo quando a lógica grita pelo contrário. Recordo-me de antes de chegaram as mercearias de conveniência abertas até à meia-noite: chamei os donos das velhas mercearias de bairro e propus uma central de compras. Um ia ao MARL e à Makro comprar para todos, numa escala semanal. Poupavam todos, vendiam mais barato, sobreviviam. Recusaram, claro — porque abdicar do “meu poderzinho” é pecado nacional. Em menos de um ano fecharam as portas, trespassando os negócios aos simpáticos indianos, paquistaneses e bangladeshis que, ironia das ironias, montaram a tal central de compras. Se fosse peça de teatro, chamar-se-ia “O Triunfo da Lógica Perdida”.
Com guarda-chuva furado
Eis o retrato: jornais centenários a guerrear com projectos digitais, canais televisivos ainda por nascer já a ser boicotados, e publicações que preferem morrer isoladas a viver em comunidade. É a metáfora perfeita para um país que insiste em confundir serviço público com vaidade privada. O IPMA há-de cumprir a sua promessa: a chuva cairá. Mas continuará a chover dentro das redacções, porque os telhados estão furados e ninguém quer demorar tempo a arranjá-los. No fim, sobra sempre a mesma pergunta: quem compra o jornal? A resposta é simples e trágica — ninguém, excepto os próprios jornalistas, que compram para ver se a sua fotografia saiu menos pixelizada. Eis o glorioso futuro: um jornalismo feito por jornalistas, para jornalistas, com jornalistas, num reality show sem público.