É sempre um prazer ler o jornal «Correio da Manhã». Falo do coração. É o mais variado, o mais fresquinho e o mais atulhado diário que se pode ter nas mãos, como se fosse um croissant com enchido de acidentes e um sumo de sangue acabado de espremer. Não há ali tempo morto: se não for uma tia a matar o marido, é um marido a partir a tia, sempre com legendas em negrito e fotografias que fazem corar até o Photoshop. Este prazer não é masoquista: é apenas a certeza de que, enquanto houver CM, não há vazio, só uma espécie de feira medieval em directo
As debutantes do choque televisivo
Vem isto à liça porque apanho de gâmbia aberta com a notícia seguinte: «Famosas reagem a vídeo de violência doméstica de bombeiro na Madeira. Sofia Ribeiro, Mel Jordão, Bárbara Parada ou Rita Ferro Rodrigues foram alguns dos rostos que se mostraram chocadas». A redacção até parecia saída de uma missa campal, onde se distribuem hóstias de indignação de hora em hora. Tirando a pequena falha na concordância de género, tudo me delicia: é um português tão criativo que já merecia estátua em Camões, talvez com a legenda “a língua é como o bombeiro: às vezes bate”. Menos o facto de mais um troglodita bater na mulher, à vista do filho de nove anos, mas isso, para o jornal, serve apenas de bengala narrativa para meter mais uma famosa na fotografia.
Quem é Mel Jordão? Será prima de Marmelada Mamede? Ou de Baba de Camelo Ronaldo? Suspiro, porque só o CM consegue dar a genealogia das celebridades como se fosse uma árvore de Natal com luzinhas fundidas. E Bárbara Parada? Sofrerá de um problema grave, imobilizada numa cama, como estava a Rosinha Lobato de Faria numa novela portuguesa de antanho, em que as perninhas só se mexiam quando ninguém via? Ou parada é nome de família, militares oriundos dos tempos arrumados, que quando a moça sai à rua forma-se logo um pelotão de magalas a cantar Drake ou Dillaz? Cada nome parece inventado por um poeta bêbado que escreve listas telefónicas com a mesma emoção de um Camilo Pessanha pós-enfarte.
A ópera bufa dos indignados de serviço
Sofia Ribeiro acho que sei. Rita Ferro Rodrigues é incontornável. Ao contrário do modesto e simpático irmão, é um furor que está sempre no abismo. Dá a cara pelo próximo projecto que vai falhar, por não ter dinheiro para andar; que deve suspirar por voltar à RTP e apresentar aqueles programas literários, que mostram umas moças vintideiras a ler poemas como se estivessem com prisão de ventre e tivessem posto um Microlax há dez minutos. Sai o poema ou sai o resto, que a natureza gástrica não se compadece com Carlos de Oliveira. O CM serve isto num prato de prata: rostos indignados, rugas franzidas e sobrancelhas em riste, como se a revolução dependesse da fotogenia da náusea.
Rostos que falam pelas rugas
Por fim, por que são «rostos que se mostraram chocadas»? Que fizeram elas? Um “hooo” com a boca? Um sinal de sobrancelhas assustador? Marmelada Mamede terá tirado o nariz e esfregado no seu AiPhone? Ferro Rodrigues irá de bote à Madeira, como a mana Mortágua vai a Gaza, com a cara fechada de Popeye, dar umas papas de serrabulho no bombeiro maubeiro? A indignação já não precisa de palavras, basta uma selfie com cara de ressaca e um filtro a preto e branco. O jornal agradece: menos espaço gasto em texto, mais espaço para anúncios de emplastros milagrosos que curam a artrose e o tédio.
Talvez amanhã tenhamos nova notícia: «Famosos rosnam perante agressor da Madeira». Ou «Famosas fazem ginástica sincronizada contra besta do Funchal». A cada dia, a indignação vai evoluindo, como se fosse uma telenovela em capítulos, onde o vilão nunca morre e as heroínas passam a vida a praticar a arte da sobrancelha em convulsão. No fim, quem lucra é o CM, esse fornecedor oficial de tragicomédias em papel barato, que transforma a desgraça em passatempo e a violência em sobremesa cultural. E eu, leitor disciplinado, continuo a folhear, com a devoção de um crente: afinal, só o «Correio da Manhã» consegue transformar a bofetada em património imaterial.?