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Oração fúnebre para uma parede com alma

Começo por informar o caro leitor — e faço-o com o mesmo entusiasmo de um funcionário da DGPC a preencher formulários — que o restauro do património, em Portugal, é uma tradição com mais camadas de absurdo do que o bolo-rei de sobras do Dia de Reis. Desde Fuas Roupinho até há dez minutos, a nossa História tem sido retocada com a delicadeza de um rinoceronte a praticar origami. E não, não exagero: já vi castelos cimentados como se fossem prédios de habitação social e pedras milenares esfregadas com jacto de areia, apagando séculos de marcas templárias — porque nada diz “cultura” como um bom decapante.

O elefante de vidro no claustro gótico

Hoje, a DGPC — nome com a musicalidade de um intercomunicador avariado — herdou a tocha, que outrora ardia nas mãos do IPPAR. E se o IPPAR soava a sigla respeitável, para nós era apenas “Ir Partindo Pedra Até Ruir”. Com sucesso garantido. Quem não se lembra das tapeçarias “restauradas” com guache e tesoura escolar? Ou das colunas românicas que ganharam um elegante revestimento em tijolo burro, como se um arquitecto modernista tivesse tido um AVC no meio da obra? O progresso, afinal, é apenas a arte de errar com materiais mais caros.

A liturgia da demolição subtil

Após 2007, dir-se-ia que a febre acalmou — mas não, somente se medicou com placebo. Este Verão, durante o meu retiro rural, assisti a novas epifanias construtivas: elevadores panorâmicos instalados em fortalezas quinhentistas, vidro temperado abraçando claustros medievais, mármore e calcário cimentados com a mesma cor das caixas da Domplex. Portugal é, de facto, o único país onde o património histórico pode acabar com a estética de uma montra de papelaria. Falta apenas importar a restauradora espanhola do Cristo-símio para completar o quadro; afinal, transformar um azulejo oitocentista numa textura de areia já é quase um hábito nacional.

O coro dos anjos de betoneira

O mais fascinante é que, sob o pretexto da “modernização”, estes atentados ao bom senso são apresentados como “valorização cultural”. É uma liturgia perversa: demole-se o passado com as mesmas palavras com que se venderia um electrodoméstico em promoção. Imagino o próximo folheto institucional: “Mosteiro dos Jerónimos, agora com luz LED e portas automáticas!” — tudo pela comodidade do turista que não quer usar a maçaneta. Ao ritmo que vamos, ainda veremos a Torre de Belém com um ‘drive-thru’ para pastel de nata.

O epílogo com cheiro a tinta fresca

E assim seguimos, num país onde a História não é escrita, mas lixada — literalmente — para brilhar nas fotografias de brochura turística. Talvez seja esse o nosso destino: transformar castelos em centros comerciais e conventos em ‘resorts’ com piscina infinita. Afinal, como se calhar dizia o filósofo Bento Caranguejo no seu inesquecível “Tractado da Destruição Delicada”: “Nada preserva mais um tesouro antigo do que torná-lo irreconhecível.” Quem sou eu para contrariar tamanha sabedoria?

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Editor Executivo. Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

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