Ministro Paulo Rangel afirma que referência a Gaza foi debatida num documento “marginal” sobre segurança alimentar e não na declaração final da cimeira. Oposição exige explicações
O Governo português, através do ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, negou esta sexta-feira ter rejeitado a inclusão de uma referência à situação de insegurança alimentar vivida na Faixa de Gaza no documento final da última cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), realizada em Bissau.
A reação surge após uma notícia avançada pelo jornal Público, que dava conta da oposição portuguesa a essa referência num documento aprovado pela cimeira, gerando protestos por parte do PS, do Bloco de Esquerda, do PCP e do Livre. Para o ministro, essa interpretação é incorreta.
“Essa questão não diz respeito à declaração final da CPLP, mas sim a um documento de caráter técnico e setorial — o relatório do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consan-CPLP) — onde não se deve introduzir considerações políticas ou conflitos armados”, afirmou Paulo Rangel, em entrevista à SIC Notícias.
Tensão entre política externa e humanitarismo
No centro da controvérsia está o entendimento sobre o papel da CPLP enquanto organização multilateral. O Partido Socialista veio exigir explicações imediatas ao Governo e pediu a audição parlamentar do ministro dos Negócios Estrangeiros. Já o Livre e o PCP consideraram “gravíssima” a alegada recusa portuguesa em reconhecer a fome vivida pelos palestinianos em Gaza.
No entanto, Paulo Rangel sustentou que a questão do conflito israelo-palestiniano foi sim discutida, mas “no espaço próprio” — ou seja, na declaração política final dos chefes de Estado e de Governo.
“Se queremos condenar algo relativamente ao conflito israelo-palestiniano, é nos setores dos conflitos que o temos de fazer, não num relatório técnico sobre segurança alimentar”, declarou.
O ministro revelou ainda que Portugal se mostrou disponível para integrar referências claras à situação em Gaza, mas que foram outros dois Estados-membros da CPLP que bloquearam essa possibilidade.
“Dois Estados opuseram-se a menções específicas. Só queriam referências genéricas aos conflitos internacionais. Estive duas horas a negociar para que, pelo menos, se mantivessem princípios fundamentais como o respeito pelos direitos humanos, pela autodeterminação e pelo direito internacional”, contou.
Rangel acusa PS de “hipocrisia política”
A crítica do PS levou Paulo Rangel a acusar os socialistas de incoerência, lembrando que o anterior governo não reconheceu formalmente o Estado da Palestina e autorizou exportações de material militar para Israel.
“O governo de António Costa tinha uma autorização para exportar armas para Israel — fui eu que revoguei isso. O PS alguma vez reconheceu a Palestina enquanto esteve no poder?”, questionou.
Rangel defendeu que, ao contrário do que sugerem os partidos à esquerda, o atual governo já tomou posições claras a favor dos direitos dos palestinianos. Como exemplo, mencionou o apoio português, em junho de 2024, à entrada da Autoridade Palestiniana como membro de pleno direito na ONU — medida aprovada com o voto de Portugal.
“Foi o único governo português que votou a favor da Palestina na ONU. Foi sob o governo do doutor Luís Montenegro”, sublinhou.
Ausência presidencial e liderança da CPLP deixam dúvidas
A cimeira da CPLP ficou também marcada pela ausência de vários chefes de Estado, incluindo o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, o que suscitou críticas internas. Rangel desvalorizou, dizendo que Portugal “não esteve mal acompanhado”:
“O Brasil, Angola e Guiné Equatorial também não enviaram os seus presidentes. Foi feito um juízo de oportunidade. A nossa representação foi diplomática, mas sólida.”
Outro ponto que ficou em aberto foi a definição da próxima presidência da CPLP, após a passagem de pasta da Guiné-Bissau. A Guiné Equatorial reivindicou o cargo para 2027–2029, apoiada pelos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), enquanto o Brasil apresentou a sua candidatura, com apoio de Portugal e Timor-Leste.
Fontes diplomáticas relataram à Lusa que o impasse durou horas e nem sequer foi formalmente discutido na sessão dos ministros dos Negócios Estrangeiros, devido à falta de consenso.
Portugal reforça compromisso com multilateralismo
Apesar das críticas, Paulo Rangel reiterou o compromisso de Portugal com o multilateralismo, os direitos humanos e a paz internacional, garantindo que a diplomacia portuguesa continuará a defender “posições justas, responsáveis e consistentes”.
“Portugal teve uma participação firme e alinhada com os valores que defende. Não deslustra. Estamos do lado certo da história”, concluiu.
Nota final: A CPLP, composta por nove Estados-membros, procura atuar em áreas como língua, cultura, educação, cooperação económica e política externa. A crescente complexidade dos conflitos globais — como o da Faixa de Gaza — coloca à prova a sua capacidade de consenso e resposta unificada.