Sou forçado a comunicar aos leitores que morreu o Prozac, a legítima droga legal da felicidade, e não houve missa de corpo presente nem directos televisivos com pivôs a fungar. Foi “descontinuada”, palavra tão asséptica que serve igualmente para medicamentos, séries da Netflix e aldeias abandonadas pela desertificação. É uma morte de segunda categoria, semelhante à dos que caem em Gaza ou na Ucrânia, onde a estatística faz de campa colectiva.
O coro das cápsulas órfãs
O Prozac já tinha idade, confessam as bulas póstumas e, ao que dizem, andam por aí umas mais novas a dar maior alegria ao povo, cápsulas ‘instagramáveis’ que prometem serotonina com sabor a frutos vermelhos. Mas nenhuma delas terá o estatuto de ícone de gerações, esse milagre dos anos ‘90 que fazia os deprimidos levantarem-se do sofá como se fossem atletas olímpicos da esperança. Saber que já não vive entre nós causa-nos uma depressão imediata, ironicamente sem tratamento específico.
Para que se perceba, o Prozac foi mais do que um medicamento: tornou-se um fenómeno cultural, um convidado de honra em revistas cor-de-rosa, filmes gigantes e de autor, todos de publicidade descarada. Era o comprimido mágico dos anos em que usávamos telemóveis que pareciam tijolos e acreditávamos que a Internet iria democratizar o mundo em vez de o privatizar. De 1992 a 2006, viveu como celebridade e, depois, desapareceu num silêncio tão cruel como a carreira de um cantor de “one hit wonder”.
O amigo sem cápsula
Só na semana passada me contaram a verdade: um amigo precisava “daquilo”, mas já não havia. Disse-o com o mesmo tom com que se pede pão fresco e o padeiro informa que só resta carcaça requentada. E ali percebi que ninguém dera pela morte do Prozac, ninguém lhe acendeu uma vela ou escreveu necrológio. Foi-se, como um vizinho discreto que nunca pediu açúcar nem fez barulho. E o silêncio é, convenhamos, o barulho mais ensurdecedor de todos.
O anti-fado engarrafado
Na cultura portuguesa — marcada pela melancolia, pela saudade e por uma introspecção que já devia pagar imposto — o Prozac encontrou a sua glória simbólica. Era o anti-fado, o anti-saudade, o anti-melancolia, uma cápsula que fazia a pátria rir-se da sua própria sombra. Enquanto uns compunham versos sobre “a solidão da luz do Tejo”, outros engoliam o comprimido verde e branco e descobriam que afinal o Tejo podia ser apenas um rio que cheirava a detergente. Tomei-o durante seis meses e encontrei a felicidade até no sol a bater numa bomba de gasolina…
Detox do além
Agora, em vez disso, tomamos sumos detox e dizemos “resiliência”, como se fosse a nova vitamina C. Mas ninguém nos explica que resiliência é só uma maneira higiénica de aceitar a desgraça com sorriso publicitário. Tiraram-nos o comprimido que nos tornava mais vivos, alegres e até sedutores, substituindo-o por hortaliças liquefeitas que nos prometem longevidade, mas cheiram a purgatório. Chamam-lhe evolução terapêutica, eu chamo-lhe a mais cruel das dietas.
O epitáfio da serotonina
Prozac foi enterrado sem lápide e sem epitáfio, mas deveria ter direito a um monumento em plena rotunda, talvez entre a estátua de Camões e a loja de conveniência da esquina. Afinal, foi ele que ensinou um país inteiro a sorrir sem motivo, a acreditar que a felicidade podia ser comprada em blister, duas vezes por dia, com copo de água. Agora que nos resta somente a tristeza bio, resta-nos também rezar a ‘Ai, deus e o é’, como quem implora ao farmacêutico por uma última caixa esquecida na prateleira de trás.
A conclusão sedada
Diz o marketing farmacêutico que há comprimidos melhores, mais modernos, mais eficazes. Mas nenhum terá o charme arqueológico do Prozac, essa cápsula que, ao contrário do Santo Graal, realmente existiu e até tinha desconto no SNS. Morreu, e com ele pereceu também a esperança ingénua de que a felicidade era uma fórmula química em cápsula colorida. ‘Ai, deus e o é’: ficamos a chorar sobre o caixão de plástico transparente de um comprimido que nos fazia acreditar no impossível.