Portugal está a arder. Outra vez. Mais uma vez. E, tal como sempre, os rostos do poder estão ausentes ou entretidos com o ruído partidário. No interior, onde a floresta é vida e sustento, onde a terra ainda se cultiva com as mãos, o fogo chega sem aviso — mas não sem responsabilidade.
Estive no terreno. Vi o que poucos querem ver. Senti o calor, a fúria, a impotência. Em São Vicente da Beira, entre o Pereiro e a Partida, as chamas roçavam casas e estalavam memórias. Não levei máquina fotográfica. Levei uma pá. Porque antes de ser jornalista, sou cidadão. Porque antes de noticiar, é preciso agir.
Mas quando volto à estrada, cruzando-me com colunas de Bombeiros, GNR, Proteção Civil, Sapadores Florestais e Exército, não posso deixar de pensar: isto é uma tragédia cíclica ou um ciclo de desleixo político?
Todos os anos se repete o mesmo cenário. O país rural transforma-se em campo de guerra. E todos os anos os mesmos discursos — gastos, vazios, adiados. A estrutura de combate existe, mas a prevenção falha. E falha porque não convém investir onde não dá votos. Falha porque o modelo florestal permanece desordenado. Porque há interesses instalados, contratos milionários com meios aéreos, adjudicações opacas, negócios em torno da desgraça.
Não se trata de teoria da conspiração. Trata-se de má gestão pública. Trata-se de responsabilidades políticas. Trata-se de uma governação que se limita a reagir — e mal.
E quando o assunto chega à Justiça, o desânimo é maior: os autores de ignições, mesmo quando apanhados, muitas vezes regressam às ruas por alegadas perturbações mentais. A punição dilui-se no sistema e o risco repete-se.
O silêncio dos decisores torna-se ensurdecedor. O poder central parece alheio. A máquina do Estado retrai-se. As férias continuam. As festas mantêm-se. O discurso oficial chega atrasado, asséptico, quase cínico. Já a oposição, apressada em capitalizar a tragédia, interrompe as férias para anunciar indignação — um teatro previsível, a que já ninguém assiste com fé.
A floresta continua a arder. As aldeias continuam a desaparecer. As gentes continuam a perder tudo. E o turismo, que tanto se promove nos grandes centros, não resiste à paisagem carbonizada. Quem quer visitar um cemitério de cinza?
Isto não é um problema climático. É um problema de modelo de país. O interior tem sido tratado como um apêndice desconfortável — útil apenas quando convém exibir bandeiras, inaugurar placas ou vencer eleições. No resto do tempo, arde.
O que se exige não são heróis por vocação, pagos a troco de pouco, a arriscar a vida todos os verões. O que se exige é um Estado presente, eficaz, comprometido com as populações e com o território.
Não basta apagar incêndios. É preciso apagar a negligência.
Nota legal: Esta opinião expressa uma crítica fundamentada ao funcionamento do Estado no contexto da gestão dos incêndios rurais, de acordo com os direitos constitucionais à liberdade de expressão e imprensa. Não imputa crimes a pessoas ou entidades específicas sem provas, respeitando o enquadramento legal vigente em Portugal (CRP, Lei de Imprensa, Código Penal).