João Rocha, homem de olhos pequenos e voz calma que governou Serpa durante 33 anos, está de volta. Aos 74, o antigo professor de Mecânica troca o conforto da reforma por mais uma campanha eleitoral, desta vez à frente do movimento independente *”Fazer Serpa”*. A decisão, anunciada esta semana, surpreendeu uma região onde o seu nome é sinónimo de poder local — e onde muitos ainda o chamam de *”presidente”*, mesmo anos após deixar o cargo.
Nascido no verdejante Norte, em Viana do Castelo, Rocha encontrou em Serpa a sua segunda pátria. Chegou em 1976, após combater na Guiné Colonial, onde abraçou o comunismo no calor da Revolução de Abril. *”Era um jovem cheio de ideais, mas também de perguntas”*, recorda António Barata, ex-colega do Partido Comunista Português (PCP), em declarações ao *Expresso*. *”Serpa deu-lhe raízes, e ele deu-lhe décadas de trabalho.”*
Uma vida entre a sala de aula e a câmara municipal
A ligação de Rocha ao território começou nas carteiras da Escola Secundária de Serpa, onde leccionou até ser recrutado pelo PCP para concorrer à câmara em 1979. *”Nunca imaginei ser autarca”*, confessou numa rara entrevista ao *Público* em 2012. *”Mas havia tanto a fazer… estradas, escolas, água para quem não a tinha.”*
Essa imagem de *”construtor”* persegue-o. Nas ruas de Serpa, ainda se mostram casas sociais erguidas nos anos 80 e o complexo de piscinas municipais, orgulho local. *”Ele não era de discursos, era de ação”*, diz Maria Leal, reformada de 68 anos, enquanto passeia o cão junto aos muros do castelo. *”Mas os tempos mudaram. Serpa precisa de mais do que tijolos.”
Ruptura silenciosa, desafio aberto
A saída de Rocha do PCP nunca foi formalmente assumida, mas a candidatura independente fala por si. O movimento *”Fazer Serpa”*, que descreve como *”plural e sem dogmas”*, promete uma gestão *”próxima das pessoas”* e *”menos ideológica”*. *”Não se trata de virar casacas, mas de adaptar-se aos novos problemas”*, explica, sob anonimato, um membro do grupo à Lusa.
A decisão divide antigos aliados. *”É uma traição à história da CDU aqui”*, critica Carlos Mendes, líder sindical e militante comunista desde os anos 90. Já para Helena Viegas, comerciante de 45 anos, a mudança é positiva: *”O PCP fez muito, mas ficou preso no passado. Serpa precisa de alguém que una, não que divida.”*
Contexto: Um “bastião” em busca de oxigénio
Serpa, terra de planícies douradas e envelhecimento acelerado, é o último município do distrito de Beja sempre governado por coligações comunistas. Mas a realidade espreita: nos últimos 10 anos, o concelho perdeu 12% da população, segundo dados da PORDATA.
As escolas fecham, os jovens partem, e os fundos europeus — outrora abundantes — escasseiam.
A eleição de 2023 reflete esta encruzilhada. Além de Rocha e da CDU (que apresenta o ex-deputado João Dias), concorrem o Chega, com o militar reformado Mário Cavaco, e uma coligação PSD/CDS-PP liderada por Ana Moisão, ex-militante do Chega. *”É a eleição mais imprevisível da nossa história”*, admite José Calado, historiador local.
O peso de uma herança
Rocha, que evitou comentários à imprensa, sabe que a sua biografia é arma e obstáculo. *”Para uns, ele é o símbolo da estabilidade; para outros, do imobilismo”*, analisa o politólogo Rui Paulo Cruz, em artigo para a SIC Notícias. O desafio será convencer os 14.500 eleitores de que o *”Fazer Serpa”* é mais do que um regresso nostálgico.
Enquanto isso, nas ruas de pedra da vila, a pergunta repete-se: *”Terá João Rocha a energia de outrora?”* Um antigo funcionário da câmara, que pede anonimato, responde: “Aos 74, ainda levanta às 6h para ler relatórios. Mas o mundo já não é o mesmo.”
As urnas dirão se Serpa, fiel durante meio século ao PCP, está pronta para apostar num homem que, ironicamente, ajudou a escrever essa mesma história.