Segunda-feira,Julho 14, 2025
25.6 C
Castelo Branco

- Publicidade -

Socialismo com Bulldozer — Ou a Elegância da Misericórdia Hidráulica

É agora, leitor. É agora que vamos salvar a dignidade humana, requalificar os espaços urbanos à volta de Lisboa e devolver a todos, esses unicórnios urbanos que já só existem em postais a preto e branco e devaneios nostálgicos de sociólogos senis. Respire fundo. Abra a alma. A revolução chegou de fato e gravata, com logótipo vermelho e promessas de decência. Só que, no bolso interior do blazer, traz uma ordem de despejo e um recibo de leasing da Caterpillar

Nada como acordar ao som do progresso: o roncar lírico das máquinas, os berros poéticos de operacionais em fúria metódica, e o choro desafinado de uma criança arrancada da sua cama de esponja reciclada. Há quem chame a isto “intervenção urbanística”. Chamo-lhe a versão orquestrada do “Agarra-me que eu vou-me a eles”, mas com power tools.

Sim, leitor. Foram os socialistas. Os mesmos que outrora prometiam fraternidade, dignidade e aquele charme gaguejante de Jorge Sampaio — que derrubava barracas só após erguer alternativas. Agora, os sucessores decidem que já chega de sentimentalismo e que é tempo de aplicar uma política de “cura pela dor”: primeiro o despejo, depois o discurso. Porque, como se sabe, uma criança ao relento aprende mais depressa o valor da resistência do que num infantário municipal.

Deixemos claro: não estamos perante um erro, mas uma actuação. Uma espécie de ópera bufa montada com entusiasmo clínico. Onde antes se faziam reuniões com assistentes sociais, agora há briefings com urbanistas que dizem coisas como “coabitação desordenada” enquanto planeiam ginásios com painéis solares. Uma barraca, segundo os novos manuais, não é uma habitação precária. É uma interrupção estética. Uma gaffe na maquilhagem da cidade. Logo, há que corrigi-la com betoneiras e eufemismos.

E nem se fale em hipocrisia. Isso seria insultuoso para os profissionais do disfarce. Estes autarcas não são hipócritas — são artistas do cinismo performativo. Passaram anos a defender os pobres como quem alimenta um tamagotchi: só o suficiente para não morrer. Mas agora decidiram que até o sofrimento tem de passar pelo crivo da estética. Se é para ser miserável, ao menos que seja em Loures ou Odivelas, onde a vista não incomoda os brunches da capital.

O socialismo contemporâneo, ao que parece, sofreu mutação genética. Tornou-se “parlamentaritério”: expele decretos com a urgência de um intestino irritado. E os presidentes de Câmara são agora burocratas de proveta, incapazes de distinguir entre um cidadão e um objecto mal estacionado. Não é má-fé. É má-formação. São gestores de Excel com emoção zero. E quando confrontados com os rostos de quem acabaram de desalojar, reagem como se alguém lhes tivesse perguntado o nome de um compositor búlgaro do século XIX — com um silêncio cúmplice e uma fuga para o PowerPoint.

Mas, claro, há planos. Há sempre planos. Miríficos, épicos, iluminados por LED’s e bonecos animados. Terrenos que outrora serviam de abrigo a gente pobre agora serão parques verdes com nomes inspiradores: “Praça da Inclusão” ou “Largo da Esperança”. Porque não há nada mais eficaz para ocultar um cadáver do que uma rotunda com nome utópico.

E assim, caro leitor, descobrimos que a utopia cheira a naftalina e má-fé. Que a esquerda perdeu o GPS da decência e substituiu a bússola moral por uma aplicação de planeamento urbanístico. Que as lágrimas dos desalojados secam mais depressa ao sol do esquecimento mediático. E que, talvez, a única solução viável para manter alguma sanidade seja investir numa chaleira eléctrica e preparar um chá enquanto o mundo arde — porque entre um despejo e outro, o que resta é a água a ferver.

Parabéns, democracia. És agora um desfile de moda onde todos usam fatos de palhaço, mas discutem cortes de Alfama.

- Publicidade -

Não perca esta e outras novidades! Subscreva a nossa newsletter e receba as notícias mais importantes da semana, nacionais e internacionais, diretamente no seu email. Fique sempre informado!

Partilhe nas redes sociais:
Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Editor Executivo. Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

Destaques

- Publicidade -

Artigos do autor

Não está autorizado a replicar o conteúdo deste site.