Perante uma guerra com a Rússia, que dura há três anos, o presidente ucraniano não se livra de acusações de fuga ao fisco e aproveitamento amoral de beneficiar de empresas off-shore. O início da invasão da Ucrânia pela Rússia calaram as notícias sobre a sua participação activa em actividades que podem ser consideradas suspeitas, sustenta agora o consórcio de jornalistas que investiga ainda os famosos papéis de informação sensível. Na verdade, analistas dos dois lados do Atlântico apontaram, este fim de semana, ser este o calcanhar de Aquiles que permite cenas desastrosas como aconteceu na Sala Oval ou o gozo permanente de Moscovo.
O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, chegou ao poder com a promessa de combater a corrupção e pôr fim aos privilégios dos oligarcas. Mas ainda hoje, porém, a sua imagem sofre à luz dos desaparecidos ‘Pandora Papers’, documentos que revelam informações sobre contas e activos de pessoas e empresas, ocultos no exterior.
Esses documentos foram trabalhados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigadores (ICIJ) e apontam ligações discretas a uma rede de empresas offshore, o que coloca incoerência do seu discurso público.
Nas eleições de 2019, Zelensky cativou os eleitores com a sua postura firme contra práticas financeiras obscuras, chegando a criticar figuras como o então presidente Petro Poroshenko, acusado de esconder dinheiro em paraísos fiscais.
Entretanto, os arquivos revelam que, antes mesmo de assumir a presidência, o ex-actor tinha transferido secretamente a sua participação numa empresa ‘offshore’, a ‘Maltex Multicapital Corp’, para um amigo próximo, Serhiy Shefir – produtor dos seus programas televisivos.
Segundo os documentos, Zelensky, Shefir e outros sócios, como Ivan Bakanov e Andriy Yakovlev, detinham cada um 25% da empresa, cuja estrutura facilitava a acumulação de lucros de forma “e impostos ligeiros” e assegurava protecção legal, mascarando em parte a origem dos dividendos.
A operação, realizada em 13 de Março de 2019 – apenas duas semanas antes da primeira volta eleitoral – passou despercebida na época das declarações públicas.
Embora o presidente tenha declarado os seus bens, antes de ingressar na política – incluindo a empresa Film Heritage, que ele detém junto com a sua esposa Olena e que está registrada… no Belize – os ‘Pandora Papers’ revelam que a ‘Film Heritage’ possuía uma participação indirecta na ‘Maltex’.
A seguir, um acordo permitiu que, mesmo sem a titularidade directa, o grupo continuasse a receber dividendos das actividades desenvolvidas em países como Ucrânia, Rússia e Bielorrússia.
Este episódio gera ainda mais controvérsia se considerarmos o posicionamento firme de Zelensky contra a ocultação de fortunas no exterior, postura que lhe rendeu 73 por cento dos votos e consolidou a sua imagem como um “novo” líder, comprometido com reformas profundas anticorrupção.
As revelações, contudo, apontam para uma relação estreita com antigos amigos e parceiros do mundo do entretenimento – muitos dos quais foram integrados ao governo.
Um exemplo disso é Ivan Bakanov, que acabou nomeado chefe da SBU (Serviço de Segurança da Ucrânia), agência de segurança nacional – e depois despedido pelo seu amigo.
Em declarações anteriores, Zelensky defendeu as suas escolhas, afirmando que as nomeações se fundamentavam na confiança pessoal e não em interesses económicos.
“Tenho alguns colaboradores que são amigos de longa data. Não estão envolvidos em negócios nem no orçamento do Estado”, afirmou o presidente em entrevista de 2020, conforme noticiado pelo ‘The Guardian’.
Contudo, a descoberta de transacções financeiras secretas e a manutenção de estruturas offshore despertam dúvidas sobre a eficácia das reformas propostas e a integridade das suas práticas financeiras.
Para os críticos, a operação com a ‘Maltex’ e as ligações com países considerados paraísos fiscais – como as Ilhas Virgens Britânicas e Belize – revelam uma faceta oculta que se assemelha aos esquemas adoptados por seus antecessores.
A polémica intensificou-se num cenário em que o parlamento ucraniano aprovou uma lei anti-oligarca e até houve uma tentativa de assassinato contra Shefir, facto que pode ter relação com a oposição das elites financeiras.
Embora Zelensky não se tenha manifestado sobre as acusações, seu porta-voz, Sergiy Nikiforov, também optou por não responder às indagações.
Assim, enquanto o país segue a luta militar, o combate contra a corrupção e a influência dos oligarcas está em suspenso – o episódio evidencia a dificuldade de conciliar um discurso de reforma com práticas que, em parte, se alinham a uma tradição de gestão opaca presente na política ucraniana há décadas.