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O despojamento

Acontece-nos com alguma frequência que, no final de cada dia, de intenso trabalho, depois de termos sido desafiados a enfrentar e suplantar um cem número de problemas, quando regressamos a casa e começamos a despir a nossa roupa, peça por peça, fazendo pausa repousante em cada acto praticado de forma quase irreflectida, e nos dirigimos para a casa de banho, para tomar um duche refrescante, sem darmos por isso, estamos a entrar numa fase de relaxamento reconfortante e de despojamento do nosso ser

Só o singelo movimento de entrar na banheira, ou polibã, observar o chuveiro, quer seja redondo, quadrangular ou de qualquer outro formato, e saber que os numerosos pequenos orifícios, nele incrustados, irão fazer jorrar a revigorante água, em forma de jacto, provocando doces e agradáveis sensações, em todas as partes expostas do nosso corpo, é gozar, por antecipação, as carícias que a água irá provocar no nosso organismo, amenizando as frustrações, os constrangimentos e as dores silenciosas das atribulações vividas, ao longo das horas de trabalho.

Na sequência desse procedimento voluntário, receber, com as mãos molhadas, a percorrerem suavemente a superfície do nosso corpo, de olhos fechados ou abertos, cada jacto de água, a cair sobre nós, de forma contínua, é afastar para bem longe os pensamentos, que nos perturbam e impedem de saborear e viver o presente, é libertar o nosso ser das camadas dos aborrecimentos acumulados, com que havíamos sido brindados, contra a nossa vontade, durante o período de tempo em que cumpríamos, às vezes, incumbências obrigatórias e desagradáveis, ditadas por outrem, quer quiséssemos ou não.

Regressados dessa maneira rotineira, por via aquática, ao meio de onde saíram os nossos antepassados, para explorar a parte sólida do planeta, na longínqua aurora dos tempos, até chegarem ao homem moderno, é reconhecer que a terra e o mar são almas gémeas, que se complementam e confluem para a realização do bem comum. É por essa razão que o mais leve toque da ternura da água, impregnada do elixir da vida, na nossa pele, sequiosa de banhos de rejuvenescimento, nos reconforta e concorre, de forma determinante, para suster e recarregar as nossas energias.

Todavia, há quem se sinta muito bem e retemperado, no seu íntimo mais profundo quando, ao deslocar-se para a praia, consegue, finalmente, estacionar o carro, mesmo enfrentando grandes dificuldades de trânsito, principalmente na época alta de verão. Atingida essa primeira etapa, despe a roupa, substituindo-a por uma única ou duas peças de fato de banho, avança, resolutamente, em direcção ao mar, dá um mergulho revitalizante, outro e mais outro, até constatar que está a despojar-se de grande parte da carga desnecessária, que trazia colada ao corpo, e percepcionar, com prazer indizível, a suave e deliciosa sensação da lavagem dos interstícios da alma, com a água tonificante do oceano.

Existem também pessoas que, para se conseguirem despojar das malignidades que haviam sofrido durante o fatigante dia, de labuta dura e incessante, não necessitam de tomar o banho refrescante no incomensurável mar salgado, basta-lhes apenas aproximarem-se da praia, ou postarem-se no local altaneiro, e observar o intervalado movimento das ondas do mar, pois, estando em relaxamento máximo, na crista dessa elevação, ficam contentes e felizes só de olhar para o colorido do infindável firmamento que, ao longe, parece tocar no oceano azul, ao querer rivalizar com a beleza inebriante da abóbada celeste. 

Uma caminhada pela mata, rápida ou lenta, de maior ou menor distância, ou uma corrida por entre os trilhos conhecidos ou recém-descobertos, ouvindo e sentindo a voz secreta e vigilante da natureza, é um excelente exercício físico de que muitos se servem para se despojarem dos excessos cometidos, não apenas em termos do aumento do peso, como também em termos de ambição, tantas vezes desmedida para, quase sempre, insatisfeita cupidez humana.

Pobres daqueles jovens, na flor da idade, que se sentem despojados, todos os dias e de ano para ano porque, depois de trabalharem em mais do que um emprego, ou no seu próprio negócio, de sol a sol, verificam que o dinheiro ganho não chega para pagarem as despesas diárias e muito menos para terem uma casa e pensar em constituir uma família, como a sociedade requeria e o país necessitava. 

Na constante luta titânica, para ultrapassar esse infortúnio, bem tentam ultrapassar a situação presente e projectar o futuro, procurando refrescar as ideias mas, salvo raras e honrosas excepções, parece que embatem contra um muro de dimensões colossais, que os impede de dar o salto necessário para mudarem o estilo de vida e viverem sorrindo para o futuro.

Desde o passado distante até ao presente, a História regista, em tinta sangrenta, concebida da seiva das agruras humanas, os mais fortes a quererem despojar os mais fracos, os povos, as Nações e os Estados mais poderosos a imporem-se, pela lei da força, e obrigar os indefesos a aceitar o despojamento forçado, mesmo quando praticado sob protesto da comunidade internacional e veemente repúdio de determinadas pessoas, que se dedicam a fazer reinar a paz e a resolver os conflitos e as guerras por arbitragem, guiados pela primazia do ideal pacifista e do bem-estar mundial.

Seria bom que, de alguma maneira especial ou, por exemplo, com o reparador sono nocturno, pudéssemos despojarmo-nos da parte do passado desnecessário, que trazemos fortemente impregnado dentro de nós, e acordássemos, com menos peso, físico e mental dispensável, e muito mais leves espiritualmente, para podermos desfrutar a bela-luz solar, resplandecente e regeneradora, com que somos brindados todos os dias pela natureza, de forma gratuita, e que nós nem sempre sabemos aproveitar e valorizar.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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Valentino Viegas
Valentino Viegas
Historiador e Escritor

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