Em ano de eleições autárquicas temos ouvido as mesmas promessas recicladas. Creches para todos, transportes grátis em todo o concelho, habitação social ao virar da esquina, ruas limpas e seguras, grandes pavilhões multiusos, muitos espaços verdes, rendas acessíveis. O discurso autárquico parece um catálogo de boas intenções, repetido de concelho para concelho, como se a realidade tivesse sofrido de amnésia ao longo dos últimos quatro anos.
Afinal, o que é que andaram por lá a fazer os presidentes da Câmara durante quatro anos? Se estas promessas são tão simples de concretizar e são tão exigidas pela população, por que razão não saem do papel? Quem gere a Câmara passa o tempo a fazer o quê? O ciclo eleitoral jamais passa da retórica. O que realmente se passa nos bastidores das câmaras? Quais são os interesses invisíveis que tolhem a acção municipal no terreno e absorvem a totalidade o tempo que devia de ser dedicado aos cidadãos?
A resposta mais crua é que, em quase todos os municípios, os mandatos municipais acabam por ser consumidos por lógicas de poder e de favores, clientelismo e nepotismo, mais do que por serviço público. Em vez de gerirem o território, muitos presidentes de câmara parecem gerir redes de influência, os seus próprios negócios para acautelar o futuro com uma excelente reforma e o dos amigos porque, depois da festa autárquica, a vida e os amigos continuam.
A realidade só se torna mais evidente quando há suspeitas formais ou decisões judiciais. Em Valongo, um vereador com pelouros sensíveis foi constituído arguido num inquérito relacionado com licenciamento urbanístico. Em Paredes, o presidente foi confrontado com acusações públicas sobre negócios imobiliários com alegadas vantagens fora do comum. Em Arouca, a presidente foi condenada a pena de prisão suspensa por falsificação de documentos ligada a ajuste directo mantendo, ainda assim, ambição política. Na Madeira, em Machico, a habitação degradada tornou-se um símbolo de oportunidade perdida. Havia verbas, mas não houve reabilitação. E a memória recente da Operação Teia, das diligências conhecidas como “Caso Concerto” e do “Tutti Frutti”, processos distintos e contextos diferentes, mas que reforçam a percepção da vulnerabilidade e da podridão do poder local e das redes de influência, da comunicação política opaca e dos favoritismos. Cada caso tem especificidades, prazos e direito de defesa, mas juntos compõem um quadro de confiança fracturada e de desacreditação da ética e da responsabilidade nas autarquias.
Os munícipes sabem como deveria de ser a força do municipalismo. Proximidade ao cidadão, capacidade de resposta rápida, leitura fina do território e, sobretudo, visão estratégica. Mas isso faz pingar dinheiro no bolso? A escola partidária ensina uma coisa diferente, a confundir a Câmara com um clube de negócio privados, a contratação pública feita à medida, a orçamentos participativos esvaziados de substância e a um marketing de inauguração que substitui a estratégia com resultados. Quando a máquina partidária ganha prioridade sobre os problemas externos, o concelho fica para trás e aprofunda a marginalidade e a pobreza.
Um eleitor mais exigente faz três perguntas simples. Primeira: qual é a visão para todo o concelho, cidades, bairros e freguesias que estejam articulados com a economia regional, nacional e, quando faz sentido, internacional? Segunda: quais os projectos estruturantes com estudos, parceiros, cronogramas, métricas e orçamento que não derrapa prontos para captar fundos nacionais e europeus no imediato e não apenas promessas para fazerem das pessoas tolas? Terceiro: que mecanismos de integridade existem como as auditorias externas independentes, dados abertos, conflitos de interesse mitigados, avaliação externa de contratos para blindar decisões dúbias e reduzir a margem para a captura por clientelas?
Há respostas conhecidas quando a ambição existe, mas abunda a incapacidade para ver mais longe do que o próprio nariz. Os municípios liderados pela ética, responsabilidade e pelo benefício exclusivo da melhoria da qualidade de vida dos seus cidadãos deviam de ser uma realidade em todo o País, mas há coragem para gerir de forma honesta o bem comum? Sabemos a resposta.
O desafio é de governança diária. Só resistem os municípios que estão alinhados com três atributos. Visão estratégia: um plano claro e de afirmação no mapa nacional e europeu; Gestão: capacidade para executar os projectos no tempo previsto e dentro do orçamento; Integridade: processos que sobrevivem ao escrutínio e ao tempo. Sem estes pilares não há instituição que sobreviva e as câmaras vão definhando paulatinamente arrastando consigo os sonhos de uma vida melhor.
Em ano eleitoral, a crítica é inevitável e saudável. Mas a ambição deve ser maior do que os slogans e alinhar o município com o desenvolvimento sustentado devia de ser um desígnio nacional em vez de agrilhoar o futuro. É olhar para o concelho e perguntar, onde criamos valor? Que problemas resolvemos em 3 meses, seis meses e ao fim de quatro anos de mandato? Temos orgulho no legado que deixamos? Os nossos munícipes melhoraram a sua qualidade de vida? Os jovens regressaram à sua terra?
Prometer é fácil, fazer é que parece ser impossível. Cumprir com transparência exige trabalho e dedicação exclusiva. E é esse trabalho, metódico, audível e verificável que separa os competentes dos incapazes.
As autárquicas são a oportunidade para os eleitores decidirem entre mais do mesmo e a disciplina da execução. Entre a máquina do favor e do clientelismo partidário que governa e o governo com ética, que entrega resultados e que presta contas. Entre um município gerido como um pequeno escritório onde o presidente trabalhava e um concelho que se sabe parte de algo maior e que quer ser líder e competitivo no País e no estrangeiro.
A resposta, como sempre, pertence aos cidadãos. Àqueles a que a mediocridade interessa porque daí tiram dividendos, emprego e benefícios pessoais e aos que querem a mudança, que sabem que podem ter um futuro e que acreditam que a mudança é possível. Ou muda com o voto ou assina em branco para mais quatro anos de atraso.