Constituído em 1989, o Grupo EKVAT da Casa de Goa tem como objetivo divulgar a música e danças de Goa, desafiando os mais jovens para, através dos sons e danças, descobrirem a sua cultura ancestral, convidando também outros com gosto de conhecerem novas culturas. Os que vieram de Goa, há muitos anos, não se acomodaram à memória que consigo trouxeram, continuando à procura das suas raízes e refletindo nas suas composições originais as vivências no país de acolhimento.
O EKVAT tem percorrido o país com atuações, nomeadamente em Viseu (Auditório Mirita Casimiro), Porto (Casa da Música), Coimbra (Exposição de Goa a Lisboa), Lisboa (Expo 98, Lisboa Capital Europeia da Cultura), Açores (7º Seminário Internacional de História Indo Portuguesa e nas Festas Sanjoaninas). Fora do país, realizou em 2001, em Londres, uma atuação a convite da Goan Musical Society, e outra em 2007, em Washington D.C., a convite da Smithsonian Institution, no âmbito da exposição “Encompassing the Globe: Portugal and the World in the 16th and 17th Centuries”.
Merecem especial referência as digressões do EKVAT pela Índia, em 1999 e em 2011, passando por Goa, Bengaluru, Mumbai e New Delhi, sempre recebido com especial carinho, o que representou para o EKVAT o reconhecimento do seu esforço na divulgação pela diáspora dos sons e das danças da sua terra natal.
Fiel ao seu compromisso de divulgar a música e danças de Goa, o Grupo EKVAT aceitou com todo o gosto o convite para duas atuações recentes.
O 1º convite foi do Museu Nacional de Arte Antiga para celebrar a Noite Europeia dos Museus no dia 17 de Maio com uma atuação com o título Kantar Goa no MNAA.
A 2ª atuação foi na Fundação Oriente, correspondendo ao convite da antropóloga Rosa Maria Perez, antes da projeção do seu documentário Outra Goa, no dia 10 de Outubro, integrado na exposição resultante do vasto espólio do fotógrafo goês Krishna Navelkar, ou Ganesh, o seu nome de adoção (ver nossa crónica anterior).
Em ambas as atuações, o EKVAT apresentou canções e danças populares, como o Dekhnni e o Fugddi, bem como o Mandó, acompanhado de Dulpodam, e rapsódias de Damão e Diu. No MNAA houve ainda um apontamento de Bahrata Natyam, dança clássica indiana, pela nossa dançarina Catarina Guerra.
Os dois Dekhnni foram Agê Nari, no qual dois bailarinos numa interpretação contemporânea de uma dança tradicional, trocam cumplicidades e gestos de sedução e Hanv Saibá Poltoddi Vetam, em que as bailadeiras oferecem a arte da sua dança e a beleza dos seus ornamentos – o noti do nariz, as cancnnam dos braços e os painzonnam dos pés, para que o barqueiro as transporte para o outro lado do rio para dançarem no casamento de Damu.
No fugddi Vauraddi Xtekamti, cantado e dançado, ao ritmo das cheretas (casca da noz do coco), os Kunnbi (trabalhadores rurais) orgulham-se da sua força de trabalho e juram o seu amor por Goa, prometendo nunca abandonar a sua terra.
O mandó, considerado o ex-libris da música de Goa, foi Tambddé Roza, tujé polé. Rosa, a bela Rosa, recebe um pedido de casamento que acaba por não se concretizar porque o noivo volta atrás. O mandó é sempre seguido de dulpodam – pequenos estribilhos sobre hábitos e tradições da sociedade goesa.
Fizeram ainda parte do repertório Dampaca, Dumpuca Bai Kalu e Barra de Damão, duas rapsódias de Damão e Diu, cantadas em crioulo português e dois originais do EKVAT – Kantar Goa, canção composta e interpretada pela primeira vez durante a deslocação do Ekvat à Índia em 1999, recordando as memórias de infância e o cheiro bom da terra molhada após as primeiras chuvas da monção e Matiechem Bangar, dedicado às mulheres que se dedicam à colheita da fruta boa que a terra dá.
EKVAT, palavra em konkani, significa “raiz”, na acepção cultural e afetiva. A música tradicional de Goa é cantada em konkani e acompanhada pelo instrumento de percussão “gumatt”. No caso da música com origem na comunidade católica é também acompanhada por outros instrumentos como violinos, bandolim, piano, violoncelo, dependendo dos géneros musicais.
Penso ser interessante, e significativo, o comentário de Rosa Maria Perez, sobre o espetáculo do Ekvat que acompanhou o seu filme: “Gostaria apenas de acrescentar que, no dia da apresentação do Ekvat no Museu do Oriente, antes do filme, a sala estava esgotada e com um público extremamente entusiástico. Gostaria ainda de sublinhar o facto de, apesar de as condições de luz/iluminação não serem de forma nenhuma adequadas, o fulgor do grupo, música e dança, sobrepôs-se a essa inadequação. E, sobretudo, quero muito pôr em evidência que a redução do número de elementos do grupo Ekvat ao longo dos últimos anos não retirou a excelência do grupo actual”.
Na verdade, ao assistirmos a uma atuação do Ekvat, apetece recuar no tempo e imaginar um pouco da vivência local da comunidade católica, nos anos em que a presença cultural portuguesa era mais significativa.
Ao contrário do que acontecia em África e no Brasil, os navegantes portugueses encontraram em Goa uma cultura antiquíssima, com costumes e tradições que se perdem nos séculos do tempo. Da conversão ao catolicismo das populações autóctones surgiu uma comunidade com especificidades próprias, onde a casa indo-portuguesa, com as suas fachadas de inspiração lusitana e um interior marcadamente hindu, são disso um bom exemplo.
Para uma perspectiva dessa convivência, vista do lado de alguém com pertença à elite tradicional mais ligada à cultura ocidental, será interessante descobrir Francisco Luís Gomes e o seu livro “Os Brâmanes” (1866), primeiro romance de um goês publicado na Índia, em Bombaim, em forma de folhetim, e depois em Lisboa, no mesmo ano, em forma de livro.
As casas particulares indo-portuguesas eram com frequência utilizadas para eventos sociais variados, como infindáveis ladainhas ou sumptuosos batizados, casamentos ou aniversários, onde a música tinha indispensável presença. Com facilidade podia tropeçar-se em instrumentos musicais espalhados pelo chão, utilizados por pequenas orquestras compostas por membros da família residente, que serviam para entreter convidados ao serão.
Desde há muito terra de emigrantes, as festas de despedida em Goa sempre justificaram a presença de muitos familiares e amigos, com a tradição a dirigir o sarau, onde cabia ao folclore luso-oriental lembrar aos que partiam que as suas raízes estariam ali para sempre. O Mandó e as Dulpodam, ensaiados durante semanas entre reuniões e conversas, eram encenados em forma de história representada e dançada por um grupo de senhoras e meninas mais ou menos amadoras, onde se narrava a história da família ou da terra. Por vezes seguia-se um Dekni, dança com mais acentuadas influências hindu, também dançado com graça e vivacidade.
A atuação do Ekvat fez lembrar essas festas em palácios ancestrais. Não sei se, algures entre a assistência, se degustaram acepipes onde se doseiam fogosos temperos indianos com o uso do forno e outras formas ocidentais de cozinhar. Nas referidas festas, era um maná de pratos de carne, ingrediente pouco utilizado na Índia antes da chegada dos petiscos lusitanos: sarapatel, a cabidela e o chouriço feitos da carne de porco (repugnante ao hindu), ricamente condimentados com pimenta, canela, cravo e o “exótico” vinagre, sem esquecer leitão assado e peru. Caris variados, do peixe ao camarão e caranguejo com quiabos, chetnim de bacalhau, caranguejos recheados, camarões tigre e ostras. Espalhados pelas mesas viam-se cestinhos com chapattis e, outra excentricidade para os sabores indianos, pão!
A acompanhar a indispensável aguardente de caju ou coco, a saborosa fenim, havia também whiskies, cervejas, vinhos e outras bebidas espirituosas.
De doçaria nem vale a pena falar! De uma simbiose luso-indiana nasceram deleitosas bebincas, doces de grão, aletria e outros cereais, assados ou não no forno, onde o ovo aparece como um dos ingredientes essenciais. Talvez seja por isso que nestes espaços os Mandós são mais puros, sabem a caramelo e confeitos.
Com frequência, na Casa de Goa, relembram-se esses tempos, recriando sons e sabores tão típicos da comunidade católica de Goa. Além da edição da Revista da Casa de Goa, entre diversas outras atividades, também cabe nos objetivos deste centro cultural promover acções conducentes à preservação da identidade das culturas de Goa, Damão e Diu, bem como fomentar trabalhos de pesquisa nas diversas áreas que consubstanciem aquela identidade e incentivar, por todos os meios, a sua divulgação e desenvolver o intercâmbio com todas as associações congéneres de goeses, damanenses e diuenses.
O grupo Ekvat e a Casa de Goa sublinham a importância da música na preservação da cultura e identidade de Goa em Portugal e no mundo.