Passaram 10 anos sobre um documentário que conta a história de um dos melhores guitarristas portugueses, que em em 2018 partiria para sempre. Daqueles pesados, com solos intermináveis, agudos e altos, que fazem arrepiar os corpos, o dele e os nossos. É mais de uma hora de constante electricidade, sem apagões, que acompanham ou comentam a vida de Filipe Mendes, ou Phil Mendrix, conforme passou a ser chamado depois de ingressar nos Ena Pá 2000, em princípios da década de 90, após ter regressado do Brasil.

A sua música é intensa, orgásmica, talvez fora de moda, mas que marca uma época
e um geração de jovens e sons onde a descoberta era o lema, quase uma tarefa
diária e absorvente. Quem com ele tocasse tinha de estar preparado para seguir a
sua linha de acordes e entrar na sua cena, o mesmo acontecendo a quem assistia
às exibições, era o seu delírio que liderava músicos e assistência. Para Gimba,
músico e compositor, fundador dos Afonsinhos do Condado, “O Filipe voa. Quando
começa a “curtir”, acho que levita mesmo”.
Mas o seu virtuosismo não era efémero ou repentino, inopinado, antes provinha de
estudo e experimentação constantes. Como lembra Carlos Callixto, investigador
musical, “os estudos nos EUA na década de 60 e o que aprendeu lá, não só nas
aulas, mas no quotidiano, trouxeram-lhe uma componente técnica que não existia
cá”.
Em princípios de 1974, Carlos Barretto e Filipe Mendes formaram uma banda
denominada Som, que passou por diversas formações até a sua composição
definitiva ter sido encontrada com o ingresso de Beto Kalulu. Recorda Carlos
Barretto que “a banda ensaiava em Oeiras, no estúdio do Filipe, um anexo
espaçoso plantado no jardim da casa dos seus pais, onde se experimentavam sons
revolucionários, temas instrumentais com compassos compostos”.
Pela banda Som passaram músicos com significativa relevância no panorama português,
curiosamente, para todos eles, representando um período de transição e procura de
identidade: Beto rumou ao Algarve, onde criou uma colónia hippie, a Aldeia da Paz;
Carlos Barreto abraçou o Jazz, entrando para o Conservatório Nacional de Música
de Lisboa, vindo a tornar-se referência de mérito incontornável no Jazz em Portugal;
Filipe Mendes, após passar pelos Psico em 1977, integrou os Roxigénio em 1980,
com António Garcês. Vivia-se uma fase em que as editoras e mesmo o público se
viravam para o chamado Boom do Rock Português (em 1981 Garcês, em entrevista
ao Se7e, afirma estarem os Roxigénio 20 anos à frente de Rui Veloso), o que levou
ao desmembramento da banda e à sua partida para o Brasil.
Filipe Mendes começou a tocar nos Chinchilas em 1967, onde se mantém até ser
incorporado nos Serviços de Engenharia como motorista do Tenente Coronel e
futuro primeiro ministro Vasco Gonçalves, de quem recorda diversas cenas
engraçadas, que bem demonstravam a sua humanidade, bom caracter e ideais
progressistas. Em 1970, ainda como motorista, gravavam Barbarella e D. João com
Luis Pedro Fonseca, Guilherme Inês e Pedro Romeiro, que mais tarde tocaria nos
Windies e seria seu companheiro no Grupo 5 em Luanda, de onde surgiria a célebre
Heavy Band. “Vasco Gonçalves emprestava-me o carro para ir aos ensaios e nunca
levantou problemas se eu me atrasava ao ir pegá-lo a casa, até chegou a apanhar o
autocarro para os Serviços de Engenharia”!
Conheci Phil Mendrix através do Beto Kalulu, quando, em 2015, preparava um livro
sobre este músico. Recebeu-me em sua casa e a conversa decorreu enquanto o
técnico especializado Cândido Cunha afinava um piano do Séc. XIX, sublinhando o
anfitrião “que após 20 anos de chuva e sol merecia recuperação completa”,
comentário que culminou na sua característica gargalhada. Inesperadamente,
dirigiu-se para uma imensa biblioteca que da sala ao lado nos espreitava e, como
que por magia, surgiu empunhando uma linda guitarra encarnada, que ajudou na
afinação definitiva do piano. “Sim, é a minha Fender Stratocaster, do mesmo modelo
do Bon Jovi. Mas no tempo do Som tinha uma Gibson”. O homem é ele e a sua
circunstância, escreveu Ortega y Gasset. Filipe Mendes é ele e uma guitarra.
Descobre em Angola a África que já tinha no sangue. Recorda que, na sua infância
em Moçambique, adormecia ao som dos batuques e do crepitar das fogueiras, mas
foi em Angola que percebeu de que forma do próprio Rock podem imanar
sensações africanas. Relembrou o sucesso da Heavy Band e da amizade com o
então “bicho raro” Fernando Girão, com cabelo pela cintura, descalço, “éramos
totalmente Rock`n Roll”. Falámos sobre a importância da vida saudável, sem drogas
ou álcool mas muito exercício fisico, assumindo-se praticante da dieta macrobiótica,
“um estilo de vida que foi criado pelo filósofo japonês George Ohsawa e que
descobri no Brasil, onde vivi na década de 1980 no mato, a 80 quilómetros de Belo
Horizonte”.
Para além do carinho com que preservava as suas várias guitarras, Filipe guardava
as roupas e botas de palco e outros artefactos cénicos, confidenciando-me “sonhar
criar um museu com lugar para todas essas recordações”. A sua página pessoal de
Facebook ainda existe embora pareça desativada, experimentem pesquisar por Phil
Mendrix Associação (que se apresenta como “Somos Mendrix – Banda oficial de
tributos ao Phil Mendrix”) e poderão reviver a sua arte. Lembremos que em 2020 foi
inaugurada em Vila Nova de Poiares, lugar com profundas ligações ao músico, um
memorial em forma de mosaico de guitarra elétrica, à escala real. Celebrava-se o
Dia Mundial do Rock, 13 de julho!
No dia do lançamento do tal livro, “Beto dos Windies – Beto Kalulu: da cena musical
em Luanda à consagração no Algarve”, em 2016 na Feira do Livro em Lisboa, Beto
Kalulu e Phil Mendrix, acompanhados por outros amigos e companheiros,
arrancaram uma fantástica “jam session”, que viajou por lugares e tempos que
sublinharam experiências comuns.
Que eu saiba, o filme só agora está disponível em streaming na Filmin, embora já
tenha sido estreado nos cinemas portugueses em 2015. Nesta plataforma
descobrem-se maravilhas e raridades distribuídas por secções como Filmes de
Culto, Clássicos, Cinema Francês, e outras com muito Rock pelo meio, não
disponíveis nas plataformas mais conhecidas e, diga-se, mais dispendiosas.
“Trocou o bentley por uma Ford Transit para os amplificadores caberem”: as
histórias de Filipe Mendes são contadas pelo realizador Paulo Abreu, que levou 22
anos a concluir o documentário “Phil Mendrix”, e que venceu o prémio atribuído pelo
público no festival DocLisboa 2015, bem como uma distinção na competição
nacional do blog CineuPhoria. A não perder!








