Tive a honra e o prazer de fazer parte de uma antologia onde se incluem textos, bandas desenhadas e ilustrações com o tema “Zé Povinho nos Dias de Hoje”, recentemente apresentada no Museu Bordalo Pinheiro, repleto de artistas e público em geral. A oportuna coordenação e publicação pertenceu à Associação Tentáculo, editora ligada à chamada “nona arte”. A ideia da minha participação partiu do facto de ter descoberto que a família Bordalo Pinheiro e as próprias faianças da Fábrica das Caldas estarem ligadas a Macau, lugar onde vivi durante bastantes anos.
Surgiu então mais clara a visão de que Zé Povinho representava a cultura e o comportamento de todo o povo português, muito para além do simples desinteresse por tudo, demonstrada pelo célebre manguito.
Zé Povinho é o povo português nas suas múltiplas facetas e “estados de alma”. O mundo não parou nos conturbados tempos do fim do século XIX e início do Século XX, com o fim da monarquia e o advento da República, altura em que o personagem Zé Povinho foi criado. Ora informado sobre que se passava no mundo, ora inculto, passivo ou radical (queres fiado? Toma!), curioso, aventureiro, cria raízes noutros lugares do mundo.
Todos somos Zé Povinho. Navegadores, poetas, músicos, médicos, arquitetos, vagabundos, prisioneiros… Segundo a historiadora Raquel Henriques da Silva, “o que particulariza o Zé
Povinho de Bordalo é a sua absoluta atualidade: ele continua a ser o cidadão dum país liberal, onde há eleições, impostos, opinião pública e liberdade de imprensa”, mas onde o povo continua explorado, acrescentarei eu. Esta representação simbólica do povo português, apresenta um caráter e atitude perante o poder que vai da indiferença e da passividade à vontade em reagir e assumir um papel de cidadão ativo, responsável e mesmo revolucionário.
A presença de portugueses em diversas latitudes, espalhou a nossa cultura pelo mundo. No Brasil, em África, em Goa ou em Macau, Zé Povinho misturou-se com as gentes locais, criando filhos que representam abraços entre culturas diferentes. Ele é macaense, goês, está em Malaca, no Sri Lanka e na Indonésia, no Brasil, em África ou Timor-Leste.
A vertente que quero retratar é a da globalização incrementada pelos Descobrimentos, da cooperação entre os povos, assumindo com orgulho a mestiçagem.
É essa estirpe aventureira, curiosa, de coração aberto a novas ideias e costumes, esse Zé Povinho que continua vivo nas terras onde permanece a presença da cultura e das raízes lusitanas, que se apaixona por Dinamene ou Akiko, Natél ou Nzinga, e cria descendentes que misturam as duas culturas. E isso reflete-se não apenas na imagem, mas também na música, na língua, na culinária, na cultura em geral.
Há várias ligações entre a família Bordalo e Macau. Desde logo a Fábrica das Caldas, criada em 1884, muito possivelmente nasceu porque o irmão de Rafael Bordalo, Feliciano Bordalo – grande impulsionador dessa fábrica – esteve em Macau e visitou a fábrica Shek Van na China. É certo que a estética inicial dos trabalhos de Rafael foi também influenciada pelo já famoso ceramista Manuel Cipriano Gomes Mafra, que assimilara os revivalismos das faianças de Bernard Palissy (c. 1510- 1590), mas parece indubitável, atendendo aos diversos sinais que sumariamente apresentaremos, que, como afirma o Padre Manuel Teixeira, “é claro que Feliciano levou para Portugal as suas chinesices, que vieram a inspirar o seu irmão Rafael” (note-se que, em 1867, antes da partida de Feliciano para Macau, em 1875, já existe uma aguarela dum menino chinês, um dos seus primeiros trabalhos, onde
explora a temática dos costumes).
Desde logo repare-se que o edifício, projetado por Rafael Bordalo Pinheiro e construído com materiais produzidos na Fábrica, apresenta um corpo central elevado que reproduz, mais que “faz lembrar”, um pagode chinês. Quanto à loiça, existem diversos estudos – não muitos – sobre as semelhanças entre os produtos das duas fábricas, mas vou limitar-me a citar António Pedro Pires, estudioso da cultura chinesa de Macau: “Sabendo-se que existe uma “semelhança verdadeiramente assombrosa entre as linguagens naturalistas da cerâmica das Caldas da Rainha e da cerâmica de Shek Wan, semelhança até no próprio processo de fabrico, pergunta-se: ter-se-ão influenciado mutuamente as duas “escolas?”
Repare-se, a título de exemplo, O Bule Cabeça de Chinês de 1901 e a Chávena e Pires de 1897, em que a taça é uma grandiosa cabeça de chinês. Acresce que o pai, Manuel Maria Bordalo Pinheiro, foi autor de um dos quatro bustos de Camões que passaram pela gruta onde consta que o poeta terá escrito parte dos Lusíadas, mais precisamente o anterior ao atual, em 1861, que substituiu o primeiro.
No Jardim da Vitória, em Macau, o monumento octogonal que se encontra no centro, foi da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro, e tem no topo o escudo português. É esta ideia de “estar e amar dois mundos”, balancear entre duas culturas, que tentámos revelar na caricatura que acompanha este texto, num desenho de Jorge Rede e coloração e arranjo final de Sofia Pereira, numa simbiose de sinais e cores ligados à China e a Macau. Seguimos a estética original, utilizando símbolos do nosso tempo, facilmente identificáveis. E tentámos fazer pairar alguma incerteza relativamente ao futuro, num mundo em mudança onde a afirmação de cada cultura se torna cada vez mais necessária.
O trabalho foi bastante divulgado e bem recebido entre a comunidade macaense








