O antigo secretário-geral do PS, António José Seguro, classificou hoje como um “atropelo à Constituição” a sugestão feita pelo almirante Henrique Gouveia e Melo de que governos possam ser demitidos por incumprimento de promessas eleitorais. Durante um debate organizado pela SEDES Jovem, em Lisboa, Seguro reforçou que quem avalia tais compromissos é o parlamento ao longo do mandato e, no final, o próprio eleitorado, respeitando os princípios fundamentais da democracia representativa

Seguro, que pondera uma candidatura às presidenciais de 2026, destacou que a Constituição é clara quanto aos poderes do Presidente da República e rejeitou qualquer proposta que implique alterações que possam comprometer o equilíbrio democrático e a separação de poderes. O ex-líder socialista argumentou que dar ao Presidente o poder de dissolver o Governo com base em promessas eleitorais criaria um precedente perigoso, fragilizando a estabilidade governativa e enfraquecendo a confiança pública nas instituições.
À saída do debate, Seguro reiterou sua preocupação com o atual estado da democracia, afirmando que há uma necessidade urgente de escutar os portugueses e incorporar suas preocupações na sua reflexão política. Segundo ele, o país enfrenta desafios significativos, como o elevado número de jovens desempregados e a dificuldade de fixação de talentos, fatores que, em sua visão, representam um risco para o futuro do país. “Não podemos falar de uma democracia saudável quando tantos jovens sentem que o seu país não lhes dá oportunidades”, afirmou.
No evento, Seguro também abordou a questão da corrupção, classificando-a como um problema estrutural que descredibiliza as instituições democráticas e afasta os cidadãos da política. Ele lembrou casos como o “cartel da banca”, que resultou na prescrição de uma multa de 225 milhões de euros, como um exemplo de que o sistema ainda falha em garantir justiça igualitária para todos. “Quando a justiça é lenta ou falha, mina-se a confiança das pessoas na democracia”, alertou.
Além disso, defendeu uma maior educação para a cidadania, enfatizando que a democracia deve ser preservada por meio da informação e conscientização da população. Para ele, algumas forças políticas tentam manipular as regras do jogo democrático para justificar medidas autoritárias sob o pretexto de “colocar ordem no sistema”. Seguro sublinhou que a preservação dos valores democráticos exige vigilância constante e um esforço coletivo para evitar retrocessos.

A reação às declarações de Gouveia e Melo também foi comentada pela candidata presidencial Mariana Leitão, que afirmou que o almirante já se encontra, na prática, na corrida para Belém. Segundo Leitão, a pré-candidatura de Gouveia e Melo foi anunciada à sua “boa maneira”, por escrito e sem direito a perguntas. A candidata destacou que, embora compreenda a frustração com a falta de cumprimento de promessas eleitorais, isso não justifica soluções que enfraquecem a lógica parlamentar.
Ela também ressaltou que o sistema democrático é baseado na existência de partidos políticos e rejeitou qualquer proposta que busque minimizar seu papel na estrutura política nacional. “O Presidente da República deve representar todos os portugueses, mas isso não significa um afastamento da dinâmica partidária”, ressaltou, acrescentando que os partidos, com todos os seus defeitos, são essenciais para organizar a vontade popular e garantir diversidade de representação.

Já o candidato Luís Marques Mendes, que também concorre à Presidência da República, interpretou o artigo de Gouveia e Melo como uma declaração de candidatura. Ele saudou o almirante pela decisão, afirmando que sua entrada na corrida presidencial tornará o debate de ideias mais rico. Mendes defendeu que, apesar das diferenças, é positivo que figuras com visões distintas se disponham a debater o futuro do país, trazendo perspetivas novas para o diálogo democrático.
Marques Mendes evitou tecer comentários sobre o conteúdo das declarações do almirante, preferindo apenas dar-lhe as boas-vindas à disputa eleitoral. Reafirmou que espera que todos os candidatos contribuam para um debate construtivo sobre o futuro do país e considerou que a eleição presidencial de 2026 será uma oportunidade para reafirmar o compromisso de Portugal com os valores democráticos.
Gouveia e Melo, um dos nomes apontados para as eleições presidenciais de 2026, decidiu passar à reserva logo após o fim do seu mandato como chefe do Estado-Maior da Armada. Segundo ele, essa decisão visou garantir maior liberdade para expressar seus direitos cívicos e participar do debate público sem constrangimentos institucionais. No entanto, as suas declarações sobre os poderes presidenciais geraram controvérsia, levantando questões sobre os limites do poder presidencial e a necessidade de proteger a estabilidade democrática.
As próximas eleições presidenciais em Portugal prometem ser um marco importante no debate político nacional. Com múltiplas candidaturas e diferentes visões para o futuro do país, a corrida eleitoral tende a ser intensa e repleta de confrontos ideológicos sobre o papel do Presidente da República e as reformas necessárias para fortalecer a democracia. Em tempos de crescente desconfiança política, o desafio será encontrar um equilíbrio entre a renovação e a preservação das conquistas democráticas que sustentam o regime há quase cinco décadas.