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A Arte do Nada e do Silêncio

Por vezes o nada pode existir, ter conteúdo?
Nada
só o vão vento
cruza o pensamento,
sem forma ou razão.

Um tema musical silencioso é igual a nada?
Um filme sem imagem é como se não existisse?
Uma exposição de pintura com as paredes vazias significa o quê?

O “nada” não existe, mesmo no “nada” há conteúdo.

O célebre tema 4’33”, composto em 1952 pelo compositor e maestro John Cage, contém quatro minutos e trinta e três segundos de silêncio. Embora muitas vezes descrito como “quatro minutos e trinta e três segundos de silêncio”, a peça não é exatamente silenciosa. Ela é estruturada em três movimentos durante os quais os músicos não tocam seus instrumentos.

No entanto, o ponto central da obra é que o “conteúdo” da música é composto pelos sons ambientais — tosses da plateia, ruídos da sala, o vento, respiração, etc.. Cage quis mostrar que o silêncio absoluto não existe e que qualquer som pode ser música, dependendo da escuta. Foi uma maneira radical de expandir os limites do que poderia ser considerado música — uma verdadeira desconstrução da ideia de composição, performance e escuta. Branca de Neve é um filme português de 2000, escrito e realizado por João César Monteiro, adaptado da peça homónima do escritor suíço Robert Walser.

Caracteriza-se por ser um filme sem imagem, uma projeção a negro com raros e curtos planos inseridos. Essa ausência de imagem é, em si, um comentário profundo sobre o cinema, a expectativa do público e a relação entre som, imagem e narrativa. Assim como John Cage em 4’33”, João César Monteiro propõe aqui uma subversão dos códigos tradicionais da sua arte, e convida-nos a refletir: o que é, afinal, “ver” um filme?

Para o cineasta, “ver” um filme não é simplesmente assistir à sucessão de imagens numa tela. Ver um filme, para ele, é um ato estético, filosófico e existencial. Trata-se de um gesto de entrega, de disponibilidade sensível e intelectual, onde o espectador está disposto a entrar em contato com o que o cinema tem de mais profundo: o tempo, o silêncio, a linguagem, o olhar, o corpo, o desejo, a morte.

Monteiro não via o cinema como mero entretenimento, mas como uma arte total, um espaço de pensamento. Ver um filme seria, portanto, “entrar em relação” com uma obra, com a sua ética, com a sua poética, com a sua verdade – e não apenas “consumir”
imagens. Como cineasta, ele exigia do espectador uma atitude semelhante à que ele próprio tinha ao filmar: uma postura contemplativa, crítica, aberta à estranheza, ao absurdo, à provocação, ao belo e ao grotesco. Em resumo, para João César Monteiro, ver um filme é um exercício de liberdade e de pensamento, uma forma de resistência ao ruído do mundo, à pressa, à superficialidade. É um gesto de escuta e de atenção. Um gesto de ver, sentir e pensar.

Yves Klein pintou “La spécialisation de la sensibilité dans l’état matière première en sensibilité picturale stabilisée” (1958), também conhecida como “A Exposição do Vazio”: Galeria vazia, paredes brancas. Nada exposto. O vazio é o “conteúdo”. O artista apropria-se do espaço como obra, do invisível como expressão sensível. Nestes exemplos, questiona-se o que é arte, o que é essencial, o que é ruído, o que é silêncio, o que é o vazio. Estão próximas de ideias zen (presentes em Cage e Klein) e de uma certa ironia e ascetismo estético (presente em Monteiro), manifestações extremas de minimalismo, mais do que isso: são convites à atenção.

Pedem do público um outro tipo de presença — mais ativa, mais atenta, mais imaginativa. Ambas desafiam, irritam, encantam. E, no fim, lembram que o essencial no gesto artístico talvez seja menos o que se mostra e mais o que se faz ver — ou ouvir — mesmo quando (aparentemente) não há nada.

Por vezes “nada” é sinónimo de absurdo.

Música / Som
1. Alvin Lucier – I Am Sitting in a Room (1969) O compositor grava a sua voz dizendo um texto, reproduz a gravação no ambiente, regrava, e repete o processo várias vezes. Aos poucos, a fala dissolve-se, e o som da sala (ressonâncias, frequências naturais) toma conta. Um estudo sobre espaço sonoro e perda do conteúdo linguístico, como um som que se auto apaga.

2. La Monte Young – Compositions (1960) Algumas peças consistem em instruções como “acender e apagar a luz num espaço com público” ou “desligar o telefone e não atender durante a performance”. Propõe experiências sonoras e temporais sem som explícito. O tempo, o espaço e o gesto mínimo como música.

Cinema / Vídeo
3. Andy Warhol – Empire (1964) Oito horas contínuas de filmagem do Empire State Building, com câmera estática. Quase nada acontece. Um retrato do tempo parado, da contemplação e da resistência ao ritmo acelerado do cinema narrativo.

4. Chantal Akerman – Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) Três horas e meia de uma mulher executando tarefas domésticas banais. A lentidão e repetição são centrais. O “nada” quotidiano torna-se tensão dramática. Subversão do olhar tradicional e crítica social via o esvaziamento da ação.

Artes visuais
5. Kazimir Malevich – Quadrado Preto (1915) Um quadrado preto sobre fundo branco. Uma pintura que nega a representação. O “zero da forma”, nas palavras de Malevich. Abstração radical: presença do vazio como início de uma nova linguagem visual.

6. Yoko Ono, ao colocar no teto de uma exposição a palavra “YES”, que só pode ser decifrada subindo o escadote disponível na sala, procura simbolizar a sua visão positiva da arte e da vida. “‘YES’ was my work and John encountered it and he went up the stairs and he looked at this word and said “‘YES’”, explicou a autora

Literatura
7. Georges Perec – La Disparition (1969) Romance inteiro escrito sem usar a letra “e” (a mais comum do francês). Uma ausência linguística que gera novas formas de escrever, desafiando a linguagem e a leitura.

8. Samuel Beckett – Waiting for Godot (1953) Dois personagens esperam por alguém que nunca chega. Pouca ação, diálogo repetitivo, quase nenhum desenvolvimento. Um teatro do vazio, da espera, da ausência de sentido, que transformou o teatro moderno.

Em todas estas obras existe a negação do esperado (som, imagem, ação, cor, narrativa), a exploração da ausência como presença. O público precisa de “preencher” o vazio, meditando sobre a arte.

Vale a pena ler o livro A História do Silêncio de Alain Corbin, da editora Quetzal. De que é feito o silêncio, será apenas ausência de ruído, ou muito mais que isso?

Esta crónica foi sobre nada, foi vazia, desinteressante

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Joaquim Correia
Joaquim Correia
“É com prazer que passo a colaborar no jornal Regiões, até porque percebo que o conceito de “regiões” tem aqui um sentido abrangente e não meramente nacional, incluÍndo o resto do mundo. Será nessa perspectiva que tentarei contar algumas histórias.” Estudou em Portugal e Angola, onde também prestou Serviço Militar. Viveu 11 anos em Macau, ponto de partida para conhecer o Oriente. Licenciatura em Direito, tendo praticado advocacia Pós-Graduação em Ciências Documentais, tendo lecionado na Universidade de Macau. É autor de diversos trabalhos ligados à investigação, particularmente no campo musical

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