“Aprendi que amigos a gente ganha mostrando quem somos”. A frase, de Herman Melville, autor de Moby Dick, numa tradução brasileira, é bem verdadeira. Por vezes cogito quantos amigos “ a sério” terei ao certo? Na verdade, não é fácil ter certezas onde acaba o conhecido e nasce o amigo.
Há amizades que morrem com o tempo ou com afastamentos inultrapassáveis. Mas saberei eu quem me considera seu amigo, mesmo vendo o mundo de forma diferente ou estando
desiludido com algum comportamento meu (cada vez ando mais anacoreta…)? Quem me aceita como sou, tentando compreender as nossas possíveis diferenças, árvores distintas de ramos abraçados?
Todos nós podemos fazer este exercício, mas entendo que, nestas contas, não deverão entrar familiares próximos ou afetividades amorosas atuais. Amizade e amor não se devem misturar, são sentimentos que têm de ser geridos de forma diferente: o amor precisa de ser alimentado e regado, como uma flor, a estima verdadeira é perene e resistente. Mas pela complexidade do conceito amor/ paixão, penso ser mais concebível amar alguém sem ser correspondido, que ser amigo de quem nos menospreza ou não respeita. Amar sem ser correspondido é doloroso, mas é uma dor que ainda pode nascer de um sentimento autêntico, generoso e até idealizado. Ser amigo de quem nos menospreza ou desrespeita é, por outro lado, uma forma que mina a auto-estima e distorce o sentido do afeto mútuo.
De qualquer forma acho que existe, com certas pessoas, uma cumplicidade, uma aceitação, uma confiança que reconforta. Como que uma certeza (a tal) de que podemos falar com esses amigos sobre qualquer coisa, sobre tudo. Depois como isso se manifestará numa situação difícil e prática, é outra conversa…
Rapidamente me chegam nomes de quem estou convencido pertencerem a essa “casta”, a esse grupo restrito e, refletindo sobre as razões dessa amizade, também facilmente encontro razões para essa ligação profunda. São personagens que surgem automaticamente, quando medito sobre o tema. Curiosamente, como que encontro uma ordem e uma noção clara sobre a fonte de onde brotou essa camaradagem, cadinho onde se formou a ligação. Tempo, lugar e envolvência – ambiente, contexto emocional ou clima relacional – que se mantém até hoje.
Quanto ao tempo, da infância, em Coimbra, restou alguém que não se sente tão perto de mim como eu dele; recuando à adolescência em Lisboa, mantém-se um companheiro com quem descobri a aventura das primeiras descobertas; da juventude são alguns, encontrados em lugares longínquos e quentes de África, a música e o mar muito contribuindo para isso. Depois muito aconteceu, faculdade, serviço militar, revolução, primeiro emprego, constituir família, primeiras viagens sem ser com os meus pais, outra vez o mar… duma época tão recheada, claro que surgiram cumplicidades profundas e firmes. Macau foi porto de abrigo para viagens variadas e intensas, físicas, emotivas e literárias, criando raízes que se mantiveram até hoje: é lugar que acolhe a diferença e nos transporta para outros mundos e outros abraços apertados, como Goa. Agora passo ao papel a inquietação que ainda mantenho, com alguma introspecção pelo meio, criando, recuperando ou ajudando a manter novas ou antigas ligações e lembranças.
Um estudo do antropólogo britânico Robin Dunbar sugere o chamado “número de Dunbar”, definindo como 150 o número médio de relacionamentos sociais significativos que conseguimos manter. Desses – adianta o antropólogo britânico e psicólogo evolucionista – cerca de 15 são amigos próximos e entre 5 e 10 são amizades profundas, o círculo mais estreito, com quem poderemos contar em qualquer situação (nem que seja para nos ouvir e tentar compreender). O número de Dunbar foi proposto em 1992, ao estudar a relação entre o tamanho do cérebro (mais especificamente, o neocórtex) e o tamanho dos grupos sociais em primatas, incluindo os seres humanos. Na verdade, acredito que a maioria das pessoas caiba nessas contas, onde também eu me incluo. E o leitor, já pensou nisso?
Claro que depois podemos ter muitos outros “amigos”, encontrados no mundo virtual, centenas ou mesmo milhares deles. Mas não me estou a referir a esses. Até existe quem passe horas a conversar com um qualquer Chat Gpt, evolução tecnológica do Cyber Pet ou Tamagotchi Ou dos anos 90, que tinha de ser alimentado para não morrer… criaturas imaginárias bem pouco saudáveis para adultos! Mas há comparsas com quem trocamos mensagens e que, embora não sejam amigos “próximos” – mesmo fisicamente, muitos habitam terras bem distantes – são pessoas que consideramos interessantes, com quem existe cumplicidade, criada através dos nossos contactos e troca de opiniões, digitais e não só.
Será que os tais amigos “a sério” que eu indiretamente listei, como um segredo só nosso, se descobrem nesse inventário de memórias, sentimentos e cumplicidades? Existirá reciprocidade, apesar de eu, inconscientemente, poder ter “escorregado” na nossa relação? No “Ensaio sobre a Cegueira”, José Saramago pergunta: “o que torna um ato de amizade verdadeiro, se não há retorno”? Afirma um amigo meu, dos que que eu considero “certos” : “Se não for eu a ligar, tu não me ligas nenhuma!”