“Vemos, ouvimos e lemos/Não podemos ignorar” são os dois primeiros versos da Cantata da Paz, um poema de Sophia de Mello Breyner que foi escrito de propósito para ser lido na passagem de ano de 1968 para 1969. Passaram-se quase 60 anos e basta ver, ouvir e ler qualquer serviço noticioso para perceber que o nosso tempo continua a ser “Pecado organizado”. Nunca se viu ou sentiu, de um modo geral, tanto desconforto das pessoas. E ainda ninguém parou para tentar perceber porque é que o mundo anda frenético, nervoso, irritado e insatisfeito.
“Vemos, ouvimos e lemos” e facilmente percebemos que existe uma onda de ódio e inconformismo gigante entre os seres humanos. Se não estão a acusar, estão a ser acusados; se não estão a ofender, estão a ser injustiçados; se não estão a exigir, estão a ser oprimidos.
O diagnóstico é fácil de traçar: o mundo como o vemos está doente. As relações estão doentes. As famílias estão doentes. As pessoas estão no limite das suas forças.
Para onde quer que olhemos vemos notícias piores, retratos de uma sociedade desumana, vestígios de uma geração livre e cruelmente perdida de si mesmo. O noticiário apresenta barbáries piores dia após dia e os nossos olhares vão-se habituando, com o inadmissível, com o impensável, com os absurdos e com a cobardia desse ser chamado humano.
Observemos o mundo ao redor e nem é preciso olhar para muito longe. Basta ver telejornais, ouvir noticiários, ler as redes sociais ou, simplesmente, observar alguns dos nossos conhecidos.
Qual é o assunto do momento?
Fazer piada da própria miséria, escancarar os problemas sociais mais graves. Pois é. É nessa vibração que estamos a viver. É essa a frequência que estamos a absorver.
O mundo está doente e sombrio, e a verdade é que a doença somos nós. Adoecemos o mundo de cada vez que fingimos achar normal ter comportamentos arrogantes, depreciativos ou abusivos. E não se deixe enganar, a maior parte da comunicação social só alimenta ainda mais isso.
Vemos, por exemplo, nos mais altos cargos das empresas, ou em cargos públicos, o que era para ser um exemplo, tornar-se numa luta pelo poder que leva o ser humano a mostrar a sua capacidade de perversão, de falta de amor, de ódio, de ganância. Essa ganância que se tornou o principal objetivo das conquistas.
O mundo está doente porque hoje não se tem senso do que está certo ou errado, ou seja, tudo está certo desde que a pessoas assim o entenda. Tudo é permitido. Existem leis para tudo. Só não existem leis que cumpram o dever da dignidade que deveria ser lei em todos os povos e em todos os lugares.
Será que nós podemos ser dignos de algo quando vemos pessoas a morrer por não terem o básico para a sobrevivência? Não, não somos dignos de nada, porque as pessoas conseguiram distorcer o que um dia foi correto e transformar um lugar que era para ser lindo naquilo que vemos hoje.
Na década de 80, um êxito musical brasileiro dizia a certa altura: “E há tempos em que nem os santos têm ao certo a medida da maldade” e a mesma música, a certa altura, ainda dizia que se a voz de uma determinada pessoa tivesse uma força igual à imensa dor sentida, o grito acordaria a vizinhança inteira.
E é assim que alguns de nós, poucos infelizmente, nos vamos sentido ultimamente.
Vemos, com demasiada frequência, pessoas mentindo, enganando, traindo para obterem algum benefício. Indivíduos que criam perfis e e-mails falsos em redes sociais para ofender e agredir conhecidos e desconhecidos, com o intuito de se divertirem ou apenas prejudicar e ferir os outros. Colegas de trabalho que se mostram simpáticos e solícitos, enquanto fazem planos manhosos para tirar do caminho quem lhes parece oferecer algum tipo de ameaça, mesmo que imaginária. Políticos que fazem declarações homofóbicas e racistas para toda a gente ouvir, e que dizem que se estão a lixar para a opinião pública, e desviam dinheiro descaradamente, cometem ilícitos, comportam-se como escória, enquanto se deveriam preocupar com o bem estar da população e ainda recebem votos nas eleições seguintes.
Enfim, é tudo isto e muito mais, mas mesmo diante de tanta frustração, ainda tenho esperança de que em breve se consiga ver as coisas por outro prisma. Que a sensação de que o mundo está a ser tomado de assalto por sociopatas desapareça e que consigamos transformar algumas coisas para tornar a vida mais agradável e menos difícil para muita gente.
João Pedro Martins