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Quando a Alma Dói

Para ganhar audiências, a comunicação social transmite (usa e abusa) notícias que atraem e prendem os espectadores ou leitores, e o que chama mais a atenção é a informação negativa ou escandalosa. Quanto mais próximo de nós acontecer a tragédia, maior é o impacto nas pessoas. A força das imagens de Gaza, onde o evidente genocídio e a fome são negadas pelo governo israelita, custa ver como aquele povo, massacrado pelo nazismo, apoia crueldade semelhante.

O fogo que tem assolado vários países da Europa, desde logo em Portugal. E a guerra da Ucrânia, que parece sem fim! Cheias, terramotos, algumas destas catástrofes sempre existiram mas com a mudança climática são mais frequentes e , acima de tudo, entram pelas nossas casas em turbilhão, repetindo imagens à exaustão. Mesmo ocorrências que não têm essa dimensão, como os problemas criados pelos emigrantes, são constantemente comentadas, aumentando a percepção negativa. Mas, reparem, não são essas tragédias que mais nos magoam, não são os desastres naturais ou as guerras onde morrem milhares de seres humanos que causam depressões e angústias, salvo quando nos afetam diretamente ou indiretamente, mas sim o sofrimento que emana do nosso interior.

Quando o fogo que arde dentro de nós foi ateado por crises pessoais, seja pela busca de identidade, sentimento de solidão, saudades de alguém que partiu, i n capacidade para aceitar o envelhecimento ou mesmo com causas que desconhecemos – aí surge a tristeza profunda, instabilidade emocional contínua e mesmo a depressão. «

A dor não existe só no corpo. Vivemos numa realidade social em que valorizamos o que é funcional e esquecemos o que é afetivo. Facilmente a aflição psíquica se torna numa dor invisível (para os olhos, como nos diria Saint Exupéry) que transpõe os sentimentos do corpo, atormenta em surdina e para a qual não existem analgésicos. A dor do corpo dói, mas não é pensada. O martírio da alma dói, mas não pode ser só sentido. Se pudesse ser só sentido, passaria mais depressa. O pensamento está sempre a mexer na ferida e o padecimento só passa quando a mente o der como esquecido.

Claro que há dores que também doem por dentro, sejam o luto, a pobreza, exclusão social, ou violência doméstica, mas cuja causa é objetiva. Não é dessas que estamos agora a falar. Há quem culpe a vida moderna, mas na verdade essa dor que nos corrói por dentro, maltrata, definha, implora pela morte libertadora, desde sempre acompanha a humanidade e há segredos que há muito ajudam ao equilíbrio psicológico.

Para filósofos da antiguidade como Epicteto, “a maior parte dos sofrimentos humanos vem da opinião que fazemos das coisas, não são os eventos em si que nos perturbam, mas a forma como os interpretamos”. Para Marco Aurélio “a alma humana torna-se naquilo que contempla, se nos focarmos em pensamentos destrutivos, tornamo-nos reféns deles”. Para as crises existenciais, Sêneca afirma que “fugir de si mesmo é uma fuga impossível”, mostrando com clareza razões para a angústia, insatisfação crónica ou busca por paz interior, lembrando que “não existe vento favorável para quem não sabe aonde vai.” E remata sublinhando que “o homem que sofre antes de ser necessário, sofre mais do que o necessário.” Todas estas soluções empíricas podem ajudar, mas dificilmente libertam quando o sofrimento é profundo e necessita de apoio médico.

E, como sabemos, há doenças cujos sintomas estão estudados, como o transtorno bipolar ou a epilepsia. Mais recentemente, são vários os autores que se debruçam sobre essas fases psicologicamente menos boas que, de uma forma ou outra, todos atravessamos. Comecemos pelo tema musical “Love Will Tear Us Apart”, dos Joy Division, que ganha profundidade ao ser compreendida dentro do contexto pessoal de Ian Curtis. Escrita durante o colapso de seu casamento e enquanto enfrentava a epilepsia, a música reflete o desgaste emocional vivido pelo vocalista. O verso “When routine bites hard / And ambitions are low / And resentment rides high / But emotions won’t grow”.

O título, repetido ao longo da canção, sugere que o amor, em vez de unir, pode ser justamente o que separa, tornando-se um símbolo do destino trágico de Curtis, inclusive gravado na sua lápide. A Paixão Segundo G.H. – Clarice Lispector. Uma mulher entra num colapso psicológico ao confrontar o absurdo da existência num momento banal. Um romance filosófico e sufocante, quase sem trama, mas intenso. O enredo trata de uma mulher identificada apenas pelas iniciais G.H., que depois de demitir a empregada e tentar limpar seu quarto, relata a perda da individualidade após ter esmagado uma barata na porta de um guarda-roupa. O Lobo da Estepe – Hermann Hesse. Harry Haller é o lobo das estepes: selvagem, estranho, tímido e alienado da sociedade.

O seu desespero e desejo pela morte atraem-no para um submundo encantado e sombrio. Um intelectual solitário, dividido entre a sua natureza espiritual e instintiva, mergulha numa crise profunda. Mistura de romance e f ilosofia, sobre viver à margem do mundo. Estorvo – Chico Buarque. Um homem vagueia pela cidade num estado de desorientação, paranóia e desconexão com o mundo. Desequilíbrio psicológico e desajustamento social, ambiguidade e sobrevivência, num passado turvo e um presente pouco credível, combinações que se pressentem perversas e que se alimentam da desigualdade. “Fecho os olhos e vejo diamantes.

Ouço um gemido rouco que não sei se é meu”. Stoner – John Williams. A vida de um professor universitário comum, marcada por frustrações silenciosas, escolhas erradas e resignação. Um romance melancólico e comovente sobre o peso de uma vida vivida sem brilho. A Redoma de Vidro – Sylvia Plath. Um clássico sobre depressão: a protagonista, jovem e promissora, entra num estado de profunda desconexão com a realidade. O livro é de uma delicadeza sublime. Narrado em primeira pessoa, ele nos mostra como a crise de Esther se dá sem nenhum motivo em particular. Não é de um dia para o outro, é extremamente sutil o modo como ela vai aos poucos sendo consumida pela depressão. A Máquina de Fazer Espanhóis – Valter Hugo Mãe. Um idoso, recém-viúvo, é internado num asilo. O romance trata da solidão, do passado, e da reconstrução possível mesmo no fim da vida. O livro conta a história do senhor Antonio Jorge da Silva, que, aos 84 anos, vai para um asilo, logo após a morte da esposa, Laura. Sua filha Eliza é quem assume a internação, pois seu outro filho, Ricardo, simplesmente desaparece e não quer mais saber do pai.

O senhor Silva, como é conhecido no asilo Feliz Idade, chega lá cheio de amargura e tristeza. Está revoltadíssimo com a perda da esposa e sofre com a solidão e a angústia de ter perdido praticamente tudo; ficou só com o seu quarto, suas roupas e uma santa de gesso (sendo que ele é ateu). Termino com um enxerto de Quási, de Mário de Sá – Carneiro, onde a dor maior é a frustração de tentar e constantemente falhar, a dor do incompleto Um pouco mais de sol – e fôra brasa, Um pouco mais de azul – e fôra além.

Para atingir, faltou-me um golpe de aza… Se ao menos eu permanecesse àquem… Num impeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuí… Hoje, de mim, só resta o desencanto Das coisas que beijei mas não vivi… Imagem que acompanha o texto: Homem Velho com a Cabeça em Suas Mãos de Vincent van Gogh (obrigado Maria João por esta e tantas outras sugestões)

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Joaquim Correia
Joaquim Correia
“É com prazer que passo a colaborar no jornal Regiões, até porque percebo que o conceito de “regiões” tem aqui um sentido abrangente e não meramente nacional, incluÍndo o resto do mundo. Será nessa perspectiva que tentarei contar algumas histórias.” Estudou em Portugal e Angola, onde também prestou Serviço Militar. Viveu 11 anos em Macau, ponto de partida para conhecer o Oriente. Licenciatura em Direito, tendo praticado advocacia Pós-Graduação em Ciências Documentais, tendo lecionado na Universidade de Macau. É autor de diversos trabalhos ligados à investigação, particularmente no campo musical

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