Há personagens na história que entram pela porta da frente da política e saem pela cave do ressentimento. Cavaco Silva, esse paladino da gravata cinzenta e da solenidade sem alma, escolheu ser lembrado não pela grandeza do cargo que ocupou, mas pela mesquinhez com que tratou quem fez possível a sua ascensão. Abril chega, os cravos desabrocham, os discursos multiplicam-se em clichés com cheiro a naftalina, e lá vem Cavaco, a soprar bolor sobre a memória nacional
Na liturgia laica da democracia portuguesa, há nomes que deviam ser entoados como preces. Salgueiro Maia, por exemplo. O Capitão sem ambição pessoal, o homem que, podendo ter sido tudo, escolheu apenas ser digno. Um escândalo, portanto, num país habituado a lamber botas e coleccionar tachos.
Mas Cavaco, qual contador de tostões da moral alheia, não viu nisso mérito. Viu ameaça. O mesmo homem que se banqueteou à mesa farta dos fundos europeus – nove milhões por dia, um delírio orçamental de fazer corar qualquer tecnocrata – não conseguiu encontrar uma esmola de gratidão para aquele que garantiu a liberdade de que tanto beneficiou.
Em 1989, Salgueiro Maia, já com o cancro a corroer-lhe o corpo, pediu o reconhecimento de serviços “excepcionais e relevantes”. O parecer foi unânime, a história era clara, os factos indiscutíveis. Mas Cavaco, esse arquétipo da frieza tecnocrática com alma de almocreve, recusou. O Capitão não era do seu clube de notáveis, não jogava à sueca no Clube dos Empregos Vitalícios, não fazia vénias nas recepções de Belém. Era sóbrio. Era justo. Era, em suma, insuportável.
E se a decisão já era indecente, o contraste tornou-a obscena. No mesmo mês, Cavaco assinou pensões para dois inspectores da PIDE. Sim, a PIDE. Essa fábrica de medo e tortura que tentou abafar Abril com rajadas de metralhadora. Os mesmos que dispararam sobre os civis no Chiado, no dia em que Portugal acordava. Para esses, houve reconhecimento. Para Salgueiro Maia, silêncio.
Não se tratou de esquecimento. Foi escolha. Fria, calculada e rancorosa. Cavaco não quis apenas ignorar Maia – quis enterrá-lo em vida no esquecimento. Só que a memória tem por hábito morder os calcanhares dos medíocres, mesmo quando se escondem atrás de percentagens do PIB.
Três meses após a morte, lá veio a condecoração póstuma. Como sempre, tarde demais. Que coragem tem o sistema para homenagear os seus incómodos apenas quando já não falam, não protestam, não atrapalham os salões. E ainda assim, a iniciativa não partiu de Cavaco, mas de Mário Soares. Um gesto mínimo, mas que expôs, por contraste, a pequenez monumental do economista de Boliqueime.
Mais tarde, já com Guterres, a viúva recebeu finalmente uma pensão simbólica. Símbolo de quê? Da vergonha. Da cobardia institucional. Do país que prefere premiar os seus algozes e castigar os seus heróis.
E Cavaco? Seguiu impávido. Distribuiu cargos, opinou sobre tudo, desceu de Belém com ares de oráculo embirrento. O homem que elevou o banal a doutrina, que confundiu estabilidade com estagnação, continuou a ditar moral como quem lê uma bula farmacêutica. Frio, impessoal, sem alma.
O episódio Salgueiro Maia não é só uma página triste: é um retrato. Mostra o tipo de país que deixamos florescer – onde o carreirismo vale mais do que o carácter, onde a bajulação vence a coragem, onde o mérito real é tratado como uma ameaça.
Na próxima vez que alguém perguntar porque é que tantos desconfiam da política, lembrem-se deste caso. Lembrem-se do Capitão ignorado. Do ingrato de gravata que lhe virou as costas. E lembrem-se que a democracia só se mantém viva se for exigente com a sua memória.
Porque os cravos murcham depressa quando regados com o esquecimento. E a liberdade, essa teimosa, não se compadece com ressabiados.
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