Nome em inglês, mudança de data e local foram introduzidos pelo executivo sem qualquer consulta aos habitantes da vila. Comunidade alcainense está atónita com aquilo que considera de “atavismo provinciano e saloio” numa “destruição completa” de um evento identitário de longa data daquela freguesia.
Caricato e bizarro podem ser os adjetivos que caracterizam os contornos da polémica instalada sobre a feira anual dedicada ao queijo que acontece em Alcains há cerca de 17 anos. A lista dos motivos que contribuem para a onda de indignação dos habitantes daquela localidade é extensa, que viram irremediavelmente perdida a tradicional Feira do Queijo de Alcains que acontecia todos os anos no fim-de-semana que antecedia a Páscoa. O agora “Portugal Cheese Festival” vai ter lugar entre os dias 5 e 7 de maio numa antiga escola devoluta da vila.
Comecemos pelo princípio. Em finais de março deste ano, veio a conhecimento público que a Câmara de Castelo Branco teria gasto mais de 100 mil euros na produção gráfica e promoção de um evento que dava por nome “Portugal Cheese Festival”. Não foi difícil de perceber que se trataria do evento de Alcains, na medida em que é o único dedicado ao queijo em todo o concelho. A notícia confirmou-se, quando a autarquia de Castelo Branco divulgou a adjudicação, por concurso público, a duas empresas da área metropolitana de Lisboa – THE RACE, Lda e HBR, Lda – para a mudança do nome e renovação da imagem, no valor total de 100 mil e 635 euros.
Num cartaz de franco amadorismo e criatividade paupérrima no que toca ao grafismo, uso de cores e elementos figurativos que o compõem, para além do título em inglês, podemos ler ainda “save the date”, num apelo talvez dirigido à comunidade de imigrantes que habitam o território. Certamente não será destinado aos portugueses que ainda resistem pelo país.
Inspirado pelo evento congénere que se realiza em Zamora, na vizinha Espanha, Leopoldo Rodrigues, presidente da Câmara de Castelo Branco, em declarações ao Diário Digital, afirmou que o antigo nome atribuído ao evento limitava a projeção de Alcains, pretendendo com o título em inglês criar uma marca poderosa que consolide o território – especialmente a vila – em termos nacionais e conferindo-lhe uma dimensão internacional. Para isso, retira Alcains do nome do certame e a língua de Camões já não é suficiente para as ambições de promoção do queijo além-fronteiras.
Há uns anos, ficou célebre a estratégia de promoção turística “ALLgarve” para aquela região do litoral português. Mas os organizadores rapidamente perceberam que não são os anglicanismos que atraem visitantes estrangeiros, mas sim a qualidade do produto e a capacidade de articulação e estabelecimento de parcerias dinâmicas com as organizações institucionais e privadas estrangeiras para colocar o produto nesses países. Agora vemos o exemplo replicado com “Portugal Cheese Festival”, numa vila onde o seu queijo dispensa apresentações para apreciadores de todo o mundo e que viu o seu nome ser apagado do cartaz. O queijo de Alcains deixou de existir.
Festival vai decorrer em escola devoluta
Passemos ao seguinte ponto: o festival de organização conjunta, numa parceria entre a Câmara de Castelo Branco, a Junta de Freguesia de Alcains, a Associação do Cluster Agroindustrial do Centro (InovCluster) e o Centro de Apoio Tecnológico Agroalimentar em Castelo Branco (CAATA) foi ontem divulgado oficialmente… na Câmara Municipal de Castelo Branco. O salão nobre da Junta da vila alcainense parece não ter sido digno para a apresentação oficial do “Portugal Cheese Festival”, mostrando uma subserviência do executivo de Alcains aos interesses da autarquia albicastrense. “Manda quem paga”, dizem os alcainenses.
E as alterações controversas não ficam por aqui. Outra que tem provocado o espanto geral prende-se com a mudança do local da organização da feira. Este ano, o evento vai decorrer na antiga escola EB 2,3 José Sanches, um espaço muito acarinhado pelos alcainenses, mas que há décadas se encontra ao abandono e recentemente a ser intervencionado para acolher o novo centro de saúde da vila. Resumindo, a feira vai realizar-se na envolvente de um edifício devoluto em obras, como se não existissem em Alcains outros locais mais apropriados e agradáveis para receber os visitantes.
A organização defende que “o novo espaço permite a instalação de restaurantes, zona de esplanada, zona de conferências, espaços infantis, uma quinta pedagógica, exposição de maquinaria agrícola, um palco para espetáculos, entre outros”. O Solar Ulisses Pardal, que inclusivamente acolhe o Centro Cultural de Alcains, com ótimas instalações, e que dispõe de um amplo e cuidado espaço exterior utilizado para os mais diversos eventos, não demonstra elevação suficiente para dar palco a este evento “de âmbito internacional”. A escola ao abandono garantirá certamente uma melhor resposta logística.
Mudança de data inviabiliza presença de emigrantes
Por fim, a data para a realização do certame também foi alterada, invocando o executivo albicastrense que auscultou “alguns interlocutores diretos da produção e comercialização de queijo e que estes têm praticamente a venda de todo o seu produto assegurada durante a Páscoa”, pelo que o primeiro fim-de-semana de Maio se afigurou como a data mais viável.
Piada não acharam os numerosos emigrantes da vila que visitam a terra natal durante a época da Páscoa e que este ano se viram privados de participar num evento com grande tradição dentro da comunidade alcainense.
A cerca de três semanas da realização do festival, apresentado com toda a pompa e circunstância, o programa de festas ainda não está disponível. Entra-se na página web criada para o efeito www.portugalcheesefestival.com e o programa está vazio… “a anunciar em breve”.
A celeuma instalou-se. Nas redes sociais, são já milhares de comentários dos habitantes da vila – e não só – a manifestarem a sua estupefação e repúdio pela mudança de estratégia na organização da feira, num verdadeiro achincalhamento público dos dois governos locais socialistas. “Atavismo provinciano e saloio” e “destruição completa com a conivência da Junta de Freguesia” de um produto já com excelente colocação no mercado nacional e internacional, que merecia “elevação na sua promoção e divulgação” são algumas das mensagens de indignação espalhadas pelo Facebook de diversos órgãos de comunicação social regionais.
A população alcainense, que “não foi tida nem achada” no processo, e apanhada de surpresa pelas alterações do certame, está atónita com a retirada de protagonismo da vila ao evento, bem como com a dissociação do nome de Alcains ao afamado produto, e teme que, mais ano menos ano, a realização da feira seja mesmo transferida para a capital de distrito.