Em dois anos de vivência nos Estados Unidos, no começo deste século, senti na pele aquilo a que o historiador e diplomata brasileiro Evaldo Cabral de Mello, refletindo sobre a obra de Joaquim Nabuco, designou por “dilema do mazombo”.

Mazombo era o vocábulo depreciativo pelo qual os portugueses nascidos no Reino, os reinóis, designavam os portugueses nascidos no Brasil. E estes, devido a essa circunstância, sentiam no espírito, como Joaquim Nabuco o confessou, uma profunda dicotomia do sentimento pessoal de pertença, divididos que estavam entre os valores da América e os valores da Europa.
“Nós, brasileiros, e o mesmo se poderá dizer dos outros povos americanos” – escreveu aquele que foi o grande arauto da luta contra a escravatura – “pertencemos à América pelo sentimento novo, flutuante do nosso espírito; e à Europa por suas camadas estratificadas.” Daí que, “desde que temos a menor cultura, começa o predomínio destas sobre aquele”. E para acentuar ainda mais o dramatismo dessa dicotomia, Nabuco concluía com esta fórmula magistral: “De um lado do mar, sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país.”
A este dilema daria mais tarde o modernista iconoclasta Mário de Andrade a designação sarcástica de “doença de Nabuco”. Ainda que tendo tido uma vida pelo mundo em pedaços repartida, nascido em Portugal e aí formado, pessoalmente nunca tive dúvidas sobre o meu lugar de pertença; no entanto, vivendo nos Estados Unidos, deu para perceber com grande acuidade que essa dúvida se possa instalar no espírito daqueles que nascem de um dos lados do Atlântico, mas têm raízes no outro.
Ao contrário do Velho Continente, onde o peso do passado é dominante e na realidade está sempre presente, na América só há futuro e, por isso, lá vivendo, tinha sempre falta do passado.
Ocorrem-me estas reflexões, quando, dois séculos volvidos sobre a independência do Brasil, apesar das repetidas declarações oficiais em sentido contrário e da intensificação das relações humanas, com destaque para a imigração brasileira em Portugal, são ainda manifestos os sinais de estranhamento entre os dois países.
Um deles, flagrante, reside no facto de o Brasil continuar a não assinalar a data da chegada de Pedro Álvares Cabral a terras de Vera Cruz, em 1500. Se, como dizia Nabuco, qualquer brasileiro minimamente culto passa a valorizar as suas raízes europeias, como interpretar esse esquecimento, em contraste, por exemplo, com o que se passa nos EUA, que todos os anos assinalam, sem complexos e com espírito universalista, o Dia de Colombo, “que nem sequer os descobriu” – como assinalou Lourenço?
Quem nos dá a resposta é o próprio Evaldo de Mello: “…sem compreender o dilema do mazombo, é a própria cultura brasileira do século XX que se torna ininteligível, pois ela foi deliberadamente criada com vista a cicatrizar nossa grande ferida oitocentista, mediante a invenção de uma identidade destinada a romper com a Europa, ou – nos termos de Nabuco – a parar na Primeira Missa.
Desde a década de 1920” – acentua o historiador pernambucano – “tudo o que fazemos é aguar, com assiduidade rara em face da proverbial inconstância brasileira, as nossas mais recentes raízes, como se não houvesse outras.” Ao contrário do que sentia nos EUA, não sentia, vivendo no Brasil, falta de passado. Lá, ele está bem mais presente do que na América do Norte. O que senti, isso sim, foi o apagamento deliberado das raízes portuguesas.
“Esquecer Portugal” – essa foi a opção feita, há já um século, na Semana de Arte Moderna de 1922 e desde então prosseguida com afinco através da desconstrução marxista e estruturalista a que foi sistematicamente submetida nas universidades a herança lusitana.
Longe vão os tempos de O Mundo Que o Português Criou, de Gilberto Freyre, ou em que a comunidade portuguesa do Brasil tinha valores da craveira de um Carlos Malheiro Dias ou de um Jaime Cortesão, capazes de contrapor, por aturado trabalho de investigação, obras de grande valor para contrariar a ideologia anti lusitanista prevalente na Escola, nos Média e na sociedade em geral.
Prevaleceu a visão crítica e, sobretudo, acabou por se impor o recalcamento, o apagar da memória, base da indiferença hoje dominante, em que, ressalvada a imigração, Portugal – sem dimensão para a grandeza da ambição brasileira – está, em geral, fora do radar do Brasil.
Dois séculos volvidos sobre a independência do Brasil, apesar das repetidas declarações oficiais em sentido contrário e da intensificação das relações humanas, com destaque para a imigração brasileira em Portugal, são ainda manifestos os sinais de estranhamento entre os dois países. Os portugueses, há que reconhecê-lo também, têm responsabilidades nesta situação. Primeiro, porque nunca se interessaram verdadeiramente sobre a sua própria história no Brasil.
Camões morreu em 1580, antes do pleno desenrolar da grande epopeia que foi o desbravamento do território, a fundação das cidades, a corrida ao ouro – que antecedeu em mais de um século a grande marcha para o Oeste na América do Norte – e, por fim, a ida da Corte e a criação do Reino Unido, em 1815. O poeta ainda assinalou que Portugal atingira a quarta parte nova e que “se mais mundo houvera, lá chegara”. Mas não mais. Ora, não estando nos Lusíadas, toda a aventura portuguesa na América acabou por não se fixar de forma permanente e bem vincada no imaginário nacional.
Depois, porque Lisboa acabou – sobretudo a partir da integração europeia, no final dos Anos 80 – por voltar costas ao Brasil, só a ele tendo regressado uma década depois, num movimento que acabou por se desfazer nas águas revoltas das crises de 2008 e subsequentes. É a “parceria inconclusa” de que fala o professor da Universidade de Brasília Amado Cervo.
Nestas circunstâncias, Portugal parece não se dar conta do perigo que corre o seu imenso património histórico e cultural do outro lado do Atlântico, submetido que se encontra a uma permanente voragem antropofágica por parte do Brasil em que a sua memória se esvai.
Conseguiremos algum dia superar os traumas da descolonização, tendo uma relação mais descomplexada e explorando, juntos, esse enorme território que é o nosso passado comum, ao qual de alguma forma aludia, com saudades do futuro, o mazombo Joaquim Nabuco, brasileiro de origem portuguesa?
Agora que se inaugura o segundo ano do terceiro século da independência brasileira, vale lembrar que está mais do que na hora de ultrapassarmos o dilema do mazombo, a “doença de Nabuco”.