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Viagem ao Tibete com passagem por Katmandu

O recente terramoto na Turquia e na Síria fez-me recordar o de 2015, no Nepal, que destruiu grande parte da zona histórica de Katmandu, cidade que desde há muito tem atraído viajantes de todo o mundo.

Em 2020 publiquei um livro, acompanhado de um disco, onde se contava, com alguma fantasia pelo meio, uma viagem ao Tibete, com passagem por Katmandu. Partíramos de Macau, eu mais seis companheiros, em busca de um libreto que teria sido composto durante a viagem de Padre Jesuíta António de Andrade ao Tibete, nos alvores do séc. XVII.

Aqui seguem algumas impressões da cidade capital do Nepal, sem fantasias.

Ficam os diálogos e as personagens originais, quem desejar saber mais sobre o que se passou, eu ofereço o livro e o disco (ainda restam alguns exemplares).

……

Viagem ao Tibete com passagem por Katmandu
DR

O voo demorou quatro horas, de um lado o excêntrico Botão, do outro, as neves eternas do Evereste, e eu lia “A Viagem ao Mundo da Droga”, o Pedro “O Rei Verde”, os outros conferiam itinerários… António meditava, olhos fechados, mãos compostas uma sobre a outra, respiração compassada e profunda. Por fim, começámos a furar as nuvens, de início campos verdes cortados por ribeiros e estradas terrosas, telhados brilhando ao sol como em rebanho, agora a imagem de alguns prédios confunde-se com estruturas sagradas, cinzentas, na cidade velha os templos vão cobrindo o écran feito escotilha do avião, finalmente a pista com estopas ao fundo.

Recebe-me a atmosfera intensa das cidades asiáticas, fervilhando de cores e gente a pé ou em motas e bicicletas, tuk-tuks e carroças, automóveis ou decrépitos autocarros! Mas aqui o barulho e a balbúrdia entram em cena de forma menos sufocante, ou não estivéssemos a mais de 1000 metros de altitude, descortinando-se ao longe os mais elevados picos dos Himalaias!

Como não podia deixar de ser, hospedámo-nos na Katmandu Guest House (KGH), 20 dólares cheios de história: fundada em 1968, consta que, logo em 1969, George Harrison, proveniente de Rishikesie, no norte da Índia, terá passado uns dias a absorver a magia da capital do então Reino do Nepal, chegando possivelmente a tripar com Cat Stevens, Jimmy Hendrix e outros… O certo é que se conhecem canções destes hippies famosos onde se refere a magia de Katmandu, existindo inclusive um espaço que assinala a passagem dos Beatles pelo pequeno hotel. Verdade ou não, o certo é que a cidade pertencia ao roteiro do chamado Hippie Trail, que levava jovens sonhadores europeus até Istambul, Teerão, Kabul e Delhi, podendo aqui seguir para Goa (ver A Última Dança em Goa), Bangkok ou Katmandu, procurando o paraíso incrustado a Oriente.

Corria o ano de 1996 e, nessa altura, já se dispensavam visitantes de pé descalço, as histórias de orgias e overdoses descritas por Charles Duchaussois já tinham criado fama negativa suficiente, os nepaleses ansiavam por turistas e não por viajantes, semelhante ao que também se passava em Goa. Veja-se este bosquejo do Cabin Restaurant, um dos restaurantes mais frequentados em 1970:

Naquela altura, era o restaurante da moda, o ponto de reunião dos hippies, todas as noites. Encontra-se na cidade velha, no fim de uma pequena ruela muito sombria. É preciso saber que está ali. No interior: um compartimento comprido com a caixa à esquerda. As paredes são negras (só muito mais tarde é que ficarão cobertas de pinturas psicadélicas). De cada lado, três mesas de mármore e ao fundo dois pilares com duas arcadas.

Ao lado, um pátio interior com retretes imundas, onde é necessário uma vela. Segue-se uma cozinha tão suja que é preciso nunca lá ir, pois de outro modo não se consegue engolir seja o que for. O patrão está continuamente stoned, com os olhos injectados. Porque fuma com toda a gente, além do shilomm que prepara para si. É o maior vendedor de haxixe; maior até, julgo eu, que os gouvernment-shops, os armazéns oficiais.

Outra razão do sucesso do Cabin Restaurant: toca-se ali música europeia e, à noite os drogados vêm ali sonhar, ouvindo os Beatles ou os Rolling Stones. Além dos hippies, vêm turistas. É a maior atracção de Katmandu, muito mais famosa que os templos”.

Viagem ao Mundo da Droga, Charles Duchaussois

No jardim da KGH, afastado da zona mais movimentada do bairro onde tudo se vende de Thame, ainda se comentavam as recentes manifestações de ajuntamentos maoístas que continuaram a criar forte instabilidade até 2006, após a tomada do poder pelo autoritário rei Gyanendra.

Cerca de 17.000 pessoas viriam a morrer nessa guerra, que convergiu para um novo processo democrático com uma Assembleia Constituinte. A monarquia foi abolida em 2008 e a Assembleia Constituinte redigiu a Constituição de 2015. No entanto, a partir de então, o país teve 10 Primeiro Ministros e muito pouco desenvolvimento social. Em 2018, uma aliança entre os dois partidos comunistas nepaleses ganhou as eleições com uma maioria de quase dois terços. Nas suas primeiras declarações, a presidente Bidhya Devi Bhandari prometeu que iria cortar com o passado, onde “a vitória tendeu a tornar os partidos arrogantes. Existe o temor de que o Estado seja opressivo. Os ganhadores tendem a ser indiferentes às suas responsabilidades. Mas isso não vai acontecer com um governo comunista”.

Viagem ao Tibete com passagem por Katmandu

O jardim era um espaço repousante, frondoso e acolhedor (foi com alegria que, ao preparar estas linhas, confirmei não ter o terrível terramoto de 2015 trazido grandes alterações), saboreávamos uma carilada, estávamos todos menos o Pedro e a Rute, que tinham resolvido ficar num hotel mais barato… mas a inexistência de água quente trouxe-os de volta para a KGH…
“Amanhã cedo temos de ir tratar do transporte para Lhassa!”, lembrei, bem sabendo que iria ser necessário alugar carrinha com condutor e guia, bem como garantir avião de regresso a Katmandu. Mas a coisa não correu bem: a rota estava suspensa e apenas ao fim de uma semana seria possível atravessar a fronteira para o Tibete. A justificação foi o degelo e o perigo de avalanches, mas muito possivelmente teria também a ver com movimentações de livrinho vermelho na mão! Tivemos de alterar o programa, seguiríamos logo que possível de avião para Lhassa e daí voltaríamos para Katmandu, por terra, o tal itinerário que nos obrigaria a voar directamente para os 3500 de Lhassa!

Mas não havia nada a fazer! Seríamos avisados da data de embarque no dia seguinte, o que acabou por acontecer passados três dias. Todos encarámos estas alterações de forma natural, habituados às contingências dos aeroportos asiáticos.

O tempo até ao embarque foi bem aproveitado, serviu para ficarmos a conhecer melhor a cidade. Todos os caminhos vão dar à deslumbrante Durbar Square, onde se situa um dos antigos palácios do rei. O contraste entre a zona antiga e os bairros mais recentes da cidade é patente: nos distritos modernos, há ruas poeirentas de tráfico ruidoso e um intenso cheiro a gasolina no ar, montras de electrodomésticos, painéis publicitários, monstruosidades de cimento, a ocasional vaca a ocupar um passeio, não faltando todavia livrarias onde se esquece a “modernidade”.

Entre o eco de sinos tocados nas oferendas e cheiros a madeira e incenso queimado, entre pombos que esvoaçam espantados por meninos, Pedro puxa-me para perto do Palácio Real e anuncia em surdina, mas com sorriso malandro, que “logo, ao pôr do sol, temos de subir ao templo Bhunath, vai ser o máximo, arranjei doces mesclados com açúcar do outro mundo, foram caros mas batem bem”.

Assim fizemos e entre macacos e um pôr-do-sol “do outro mundo” alguns de nós conheceram sensações que não mais esquecerão. A Zélia que o diga, ainda tenho a fotografia, sorriso apalhaçado que parece afastado da face encostada à mão, num esgar onde os olhos brilhantes sobressaem, que se prolongou até à corrida de regresso no Tuc-Tuc (a Rute achou bem pouca graça!). Eu olhava a cidade onde a cacofonia de buzinas e poluição se estende em baixo e ao longe, à minha volta esvoaçam pombos, crianças gritam entre o repique de pequenos sinos, muitos macacos saltitam rodeados de figuras de pedra sagrada. A Rosa encontrou maravilhas entre estátuas douradas que de costas direitas meditam, bandeiras coloridas ligando estupas que envolvem olhos sagrados e rezas monocórdicas intercaladas com guinchos de macacos.

Na cidade, tivemos a sorte de Amita Shakya, na altura a Kumari (menina deusa), ter aparecido à janela por breves momentos, cerimonial que a recente implantação da República deverá proibir: periodicamente, são escolhidas meninas pré-púberes que só podem sair à rua em procissão e que para alguns hinduístas e budistas nepaleses representam encarnações do deus Durga. A Fernanda tirou muitas fotografias entre comentários de crítica ao cativeiro forçado, por parte de vários turistas que se agitam no pequeno pátio, enquanto o Pedro e a Rute se abraçavam junto de uma grande estátua de Garuda, o homem-pássaro que aparece associado ao deus Vixnu.

Não voltara a ter qualquer conversa com o Prof. sobre a nossa missão, nem depois da alteração do trajecto, como se ambos entendêssemos que esse momento surgiria na altura certa. Todavia, não deixei de reparar que, nessa noite, conversou, por breves momentos, no pátio da Guest House com um jovem ocidental. Pouco depois, pediu-me para logo que possível o acompanhar na compra de um traje de monge. Será que eu fazia ideia onde tal se poderia arranjar?

Por acaso sabia: em 1994, resolvera experimentar a vida monástica (eu, um ateu de nascença!), embora só por três dias! Sim, três dias encerrado num mosteiro budista sem falar, apenas comer, dormir e meditar, para além de várias horas na biblioteca, apreciando (pelo perfume, pelo toque e pelas cores) antigos livros de oração decorados a bronze. Mais tarde, descobri que cheiravam a incenso e velas de manteiga de iaque, envolvendo impressões digitais milenares coloridas por arcos-íris de sabedoria.

Nas palestras, aprendíamos meditação para ser utilizada em experiências pessoais, interiores, entre alunos na maioria franceses e alemães, de preferência em posição de lótus… ou parecida. Não esqueci a aula em que Karin, a monge sueca, nos guiou até às portas da morte. Usando a imaginação, experimentámos uma “morte branca”, qual De Profundis Valsa Lenta, de José Cardoso Pires, passo a passo, tranquilamente, dominando o temerário percurso.

O mosteiro budista tibetano de Kopan, nos subúrbios de Katmandu, desde os anos 70 que é muito frequentado por ocidentais que procuram um caminho rápido para o Nirvana, o tal estado de “ausência de sofrimento”. Mas, para lá chegar, ao mosteiro, o nosso caminho foi perigoso (tuk-tuk em louca velocidade com curvas em duas rodas entre trânsito infernal), poeirento e poluído, bem agarrados ao canudo de aço da capota, aparelhagem portátil em altos berros, entre vacas e galinhas esvoaçantes, como se o Criador nos aconselhasse a não seguir o ínvio caminho da conversão budista.

Por fim, depois de uma longa subida a pé, encarámos o edifício amarelo claro que, até 1971, data em que foi adquirido por uma princesa russa, servia de residência ao astrólogo do rei do Nepal. A história merece ser contada: Zina Rachevsky era uma bela mulher, excêntrica hippie filha de um expatriado russo que, em 1966, cansada do brilho “socialite” de Hollywood, parte para o Nepal e torna-se na primeira discípula ocidental do Lama Yeshe, convencendo-o a abrir cursos sobre budismo para estrangeiros. Começaram por residir em Boudhanath, perto de Katmandu, mas o magnetismo da antiga casa do astrólogo, com uma soberba vista sobre o vale de Katmandu, levou a que a princesa Zina, agora com o nome budista de Thubten Changchub Palmo, contribuísse para a compra do terreno, a que se juntaram os donativos e prestações dos alunos, assim nascendo o mosteiro de Kopan, em 1971. Tornou-se monja e faleceu num retiro junto ao Evereste, nas cavernas de Lawudo, em 1973. Tinha 43 anos e o corpo cheio de “sex and drugs and rock & roll”.

Na parede, em grandes letras, pode ler-se
“Whether one believes in a religion or not, and whether one believes in rebirth or not, there isn’t anyone who doesn’t appreciate kindness and compassion.
(H. H. The Fourteenth Dalai Lama)”

Na loja do mosteiro, adquirimos o traje de monge, que mais me pareceu um emaranhado de panos vermelho escuro e açafrão, que o empregado (de óculos escuros e auscultadores nos ouvidos) enroscou no historiador, que aprovava, sorridente.

Viagem ao Tibete com passagem por Katmandu

“Joaquim, não lhe posso adiantar muito mais, mas a verdade é que a mudança de itinerário obriga a adaptações que a seu tempo entenderá”, murmurou, discretamente.

Eu já tinha desistido de fazer perguntas, gozava o prazer de me deixar ir, atento para que o resto do grupo não estranhasse algum comportamento suspeito.
Mas, nessa noite, em casa de um vendedor de fruta com quem o Pedro metera conversa, e que sabia inglês, convidados para uma jantarada no chão, rodeados pela família, comendo com a mão direita (a outra tem funções menos dignas) saboroso, mas pobre, caril de lascas de frango, a Fernanda não deixou de perguntar “onde é que vocês foram que desapareceram durante 3 horas?”.

Limpando o acastanhado molho que caía do queixo no papel de jornal que servia de toalha, bebendo chá para ganhar tempo, tentei explicar que era uma surpresa que estávamos a preparar e que, aproveitando as vagas palavras de António, a seu tempo iriam entender.

Foi um alvoroço, “vá lá, diz o que é!”, as bonitas filhas do anfitrião espantadas a olhar, a esposa escondia a cara num sorriso malandro, eu tentava mudar de conversa, folgando em português que o bebé que a mãe abraçava era bem feínho, António lançava-me olhares inquietos, enfim, a coisa acabou por acalmar…

(Ainda agora a Zélia se lembra desse episódio e também que uma das filhas muito teimou para ir com ela para Macau trabalhar, acabando por lhe escrever uma carta a insistir!).

Nesse dia à tarde, véspera da partida de avião para Lhassa, a Zélia, Rute e Rosa tinham ido com a miúda ao cabeleireiro, memorizando a Zélia que “levámos uma massagem na cabeça que, cuidado, era bem violenta, a cabeça abanava de um lado para o outro!”.

Mas, dessas horas a minha memória é outra. Confesso que nunca me tinha sentido tão desconfortável! E também tem a ver com massagens!

Era meu hábito, desde que em Marrocos fora surpreendido num hammam de bairro – não daqueles banhos públicos de hotel para turistas ou elites locais, mas dos que das paredes escorre água e a nuvem de vapor é tão densa que mal se deslumbram as proeminentes barrigas dos clientes – com uma visão que nunca esquecerei: de costas para a entrada, sentada numa cadeira, uma imensa figura onde só se vislumbrava carne e cabelo encharcado até ao pescoço! Explicaram-me que era a massagista de serviço, “trata qualquer enxaqueca da cabeça à ponta dos pés”!

Gostei, senti-me bem, tornei-me aficcionado e interessado na matéria. Seguiram-se as artísticas na Tailândia, vieram várias nas areias e ao sol das Filipinas, não faltaram as altamente especializadas dos profissionais chineses, nem (inadvertidamente) as mais ousadas de algumas profissionais chinesas, não esquecendo as delicadas manipulações japonesas. Mas o que me aconteceu em Katmandu não voltei a ensaiar…

Era um rapazito pequeno, magro, cartaz nas mãos (Come and Try Nepalese Massage, he is a professional doctor), achei que era coisa séria e que não teria surpresas dispensáveis. Em qualquer parte do mundo, escolher uma massagem requer certos cuidados! Dez dólares americanos, é razoável, não pode ser um leigo aldrabão.

Seguimos pelas ruas cobertas de pó e charcos de água, entre bicicletas, vacas sagradas e mulheres com cestos de fruta à cabeça, subimos umas escadas e entrámos numa sala escura. O ruído da rua era abafado por uns largos cortinados, uma espécie de maca no meio e uns cabides nas nuas paredes. Passava uma aragem que arrepiava o corpo, estranhei quando me pediu para tirar a camisa, era Abril e ainda não estávamos no Verão.

Deitei-me na pequena cama, lençóis frescos, sentindo duas mãos a puxarem as calças um pouco para baixo, o suficiente para tornar os glúteos acessíveis, e foi por aí que iniciou, por vezes descendo do pescoço esquadrinhando e pressionando cada osso. Mas ele inverteu a direção, arrastou-se minutos por aí. Eu estava inquieto, não conseguia relaxar, ele insistiu, o tempo passava e porque claramente as mãos não atalhavam por mares encapelados, comecei a descontrair e, inesperadamente, começou a surgir uma sensação inadequada, descabida, quase imprópria, porque nada na tarefa do massagista justificava essa reação, sendo um mero e controlado serviço técnico! Felizmente, passados vinte minutos, o tratamento estava terminado. Tenho consciência que encontrei um aliado no tal ventinho frio…

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Joaquim Correia
Joaquim Correia
“É com prazer que passo a colaborar no jornal Regiões, até porque percebo que o conceito de “regiões” tem aqui um sentido abrangente e não meramente nacional, incluÍndo o resto do mundo. Será nessa perspectiva que tentarei contar algumas histórias.” Estudou em Portugal e Angola, onde também prestou Serviço Militar. Viveu 11 anos em Macau, ponto de partida para conhecer o Oriente. Licenciatura em Direito, tendo praticado advocacia Pós-Graduação em Ciências Documentais, tendo lecionado na Universidade de Macau. É autor de diversos trabalhos ligados à investigação, particularmente no campo musical

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