Segundo a historiadora Raquel Henriques da Silva, “o que particulariza o Zé Povinho de Bordalo é a sua absoluta atualidade: ele continua a ser o cidadão dum país liberal, onde há eleições, impostos, opinião pública e liberdade de imprensa”, mas onde o povo continua explorado, acrescentarei eu. Esta representação simbólica do povo português, apresenta um caráter e atitudes perante o poder que vão da indiferença e da passividade à vontade em reagir e assumir um papel de cidadão ativo, responsável e mesmo revolucionário.
Preparando a celebração dos 150 anos da primeira aparição do Zé Povinho, que se comemoram em 2025, a Associação Tentáculo, o Museu Bordalo Pinheiro e a Câmara Municipal das Caldas da Rainha, vão criar uma antologia e para tal estão a receber submissões de banda desenhada, cartoon, caricatura, ilustração, texto, etc. O tema será sublinhar que a figura continua viva e atual.
Foi nas folhas do seu jornal humorístico A Lanterna Mágica, em 1875, que Rafael deu a conhecer o Zé Povinho ao Mundo, numa caricatura alusiva ao Santo António que se celebra a 13 de junho. Na imagem está representado um peditório para o Santo com um altar e um rapaz que pede dinheiro aos transeuntes. Ambos os personagens representam políticos da altura e a pessoa que passa coça a cabeça com um ar confuso, enquanto paga. Nas suas calças conseguimos ler “Zé Povinho”.
Muito se tem escrito sobre a evolução do personagem, que atravessou monarquia, república, censura no fascismo, liberdade do 25 de abril, até aos dias de hoje. Encarnando outras figuras (Zé da Fisga, Zé Ninguém ou João Bítor) ou em caricaturas pontuais, vários autores se têm disso encarregado, como Abel Manta, Rui Pimentel ou Nando, entre tantos outros. A censura que vigorou durante o Estado Novo limitou drasticamente a tradição satírica e crítica da imprensa portuguesa, mas não evitou que o Zé Povinho se tornasse um ícone importante no imaginário popular. Mas com a revolução em 25 de abril a voz do povo ressurge, insubmissa, alegre e cheia de esperança, com os caricaturistas a seguirem na senda do Zé Povinho, como está bem retratado no filme “O Zé Povinho na Revolução” de Lauro António (1978).
Numa análise mais aprofundada do personagem, descobriremos que não representa apenas uma determinada característica de um povo, antes toda a complexidade inerente às vivências do dia a dia, bem como atitudes perante as guerras onde esteve envolvido (Ultimatum inglês, guerra do ópio, guerra colonial) ou a imigração (Brasil, Angola, Macau, etc). Há “Zés Povinho” soldados, brasileiros, chineses ou macaenses. Assunto muito interessante que analisaremos posteriormente.
Bordalo foi o mais célebre artista plástico, caricaturista e ilustrador português do século XIX. Estudou no conservatório, na escola de Belas Artes, em Letras e na escola de arte Dramática, mas foi através do jornalismo e da caricatura que ficou conhecido. Em paralelo, exerceu atividade como ceramista na fábrica de faiança das Caldas da Rainha onde criou um estilo próprio que vive até hoje. E aqui de novo surge Macau e a China, pois tudo indica que o seu estilo tenha sido muito influenciado pela estadia nesse território de Feliciano Pinheiro, irmão de Rafael, que visitou e se encantou com a fábrica de porcelanas de Shek Wan, na China. Como escreveu o saudoso Padre Teixeira, investigador da presença portuguesa por essas paragens “É claro que Feliciano levou para Portugal as suas chinesices, que vieram a inspirar o seu irmão Rafael…”. História que também fica para mais tarde.
O livro, será lançado no Museu Bordalo Pinheiro em Lisboa e posteriormente apresentado no Festival de Fanzines e Banda Desenhada de Alpiarça, no Festival Internacional de BD da Amadora e no Festival Internacional de BD de Beja. Uma mostra com os melhores trabalhos será organizada nas Caldas da Rainha e no Clube Português de Banda Desenhada, na Amadora.