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Cantem baixinho, os Anjos estão a dormir

Estamos perante uma tragédia de proporções épico-microscópicas. Uma cantora de sátiras disse coisas. Uns cantores de baladas disseram “ai”. E, num instante, passámos da liberdade de expressão à liberdade condicional. Com uma pitada de pus. Porque sim, neste novo cânone jurídico-musical, a crítica causa acne. E os olhos vertem sangue não de emoção, mas de sensibilidade ofendida.

Vejamos. Joana Marques, conhecida por dissecar egos com a delicadeza de um cirurgião bêbado, achou graça a uma performance do hino nacional cantada pelos Anjos — esse dueto de irmãos cuja música tem a consistência dramática de um pudim de pacote. Foi num evento motorizado, algures no Algarve, perante um público mais interessado no roncar dos motores do que na modulação vocal dos senhores Anjos. E, como a justiça poética é um conceito cada vez mais literal, os irmãos decidiram processar a humorista por UM MILHÃO de euros. Um milhão, sim — não de aplausos, mas de euros.

Alegam danos pessoais e profissionais. Entre os ferimentos, mencionam um ataque de acne e um derrame ocular. Imagino o despacho médico: “Paciente apresenta hipersensibilidade crónica à ironia. Prescreve-se silêncio radiofónico e abstinência de espelhos.” Um dos irmãos decidiu fazer triatlo como terapia — quem sabe se por fuga à realidade ou tentativa de suar o sarcasmo. O outro, em silêncio, lambe feridas que, em última análise, só a dignidade mal curada consegue explicar.

O problema, note-se, não são os Anjos. Eles são apenas a metáfora perfeita — inicialmente absurda, como prometido — para um país em que a sátira começa a ser vista como acto terrorista. O que está em causa é outra coisa: a ideia perversa de que rir dos poderosos, dos populares ou dos desafinados é mais ofensivo do que viver em silêncio. Quando um duo de baladas de FM pode exigir indemnização a uma cronista por lhes ter tocado na nota errada, então está na hora de se perceber que não estamos a brincar.

E o mais irónico (sim, há sempre mais ironia) é que tudo isto acontece num país onde o humor sempre teve de driblar censuras. Herman José foi silenciado pela ala croma do cavaquismo. A RTP, essa instituição de entretenimento e expediente, engavetava programas com mais pontaria do que um pelotão de atiradores. E, agora, Joana Marques enfrenta um processo por ter dito… a verdade com graça.

Se os Anjos tivessem tido a centelha mínima de criatividade — ou sentido de oportunidade — teriam respondido com uma canção. Uma balada “anti-bullying satírico”. Uma ópera pop em dó menor sobre a fragilidade do ego artístico. Mas não. Escolheram a via litúrgica do tribunal. Porque nada diz “nós somos artistas resilientes” como um processo judicial em nome da epiderme.

E é aqui que a espiral se fecha, ou antes, se estreita. Porque não estamos só a falar de um duo em declínio a exigir reparações emocionais. Estamos a falar de uma epidemia de ofensa institucionalizada. Uma pulsão crescente para tornar o humor um acto regulado, moderado, higienizado. O capitalismo agradece: humoristas? Não, obrigado. Preferimos influencers brandos e públicos anódinos.

Se não acordarmos — e depressa — acordaremos um dia num país onde se ri apenas com autorização. Com licença prévia, como os folhetins do século XIX. Um país onde os juízes são editores e os humoristas, criminosos de opinião. Como, aliás, nos avisa Bruno Nogueira no genial “Ruído”.

E depois alguém escreverá: primeiro calaram os que faziam piadas, mas eu não disse nada, porque o meu trabalho era de juiz.

Se há lição neste episódio, é esta: quando os Anjos perdem o céu e caem em tribunal, talvez seja tempo de nos perguntarmos se ainda sabemos rir. Ou se estamos todos só à espera que nos dê um derrame. Mas com recibo.

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Editor Executivo. Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

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