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A Primeira Guerra Mundial da Vergonha Deslavada

Chegou, pois, o momento de envergar a gravata da consciência — ainda que por cima de uma t-shirt molhada com sangue pixelizado e indiferença morna. Não, caro leitor, não é uma crónica sobre guerra. É uma missa de corpo presente para a vergonha. O cadáver, claro, não compareceu. Está demasiado ocupado a coordenar hashtags e a verificar se a luz do bombardeamento realça os contornos da desgraça no feed.

Não se fazem guerras como antigamente. Antes havia telegramas secretos, espionagem em duplicado e generais com bigodes de autoridade. Agora, temos notificações push. “Caros inimigos, estaremos a alvejar o hospital às 16h45. Não se atrasem.” A decência já nem se disfarça de cinismo: limita-se a pedir likes. O horror deve ser filmado na horizontal e com boa iluminação, que o algoritmo não perdoa sombras.

Os civis, esses fantasmas em carne viva, tornaram-se ruído de fundo — um zumbido incómodo que se cala com um scroll nervoso. Gaza já não tem nomes. O Irão está em fila para perder os seus. E nós, que antigamente distribuíamos tratados e vénias diplomáticas como quem semeia rosas em cemitério, optámos agora pelo lençol europeu: branco, neutro, com etiqueta ecológica e 300 fios de contagem. Ideal para tapar cadáveres morais.

A América? Ah, essa república de silêncios seleccionados, assobia despreocupadamente uma canção dos Beach Boys, enquanto despeja democracia com precisão milimétrica sobre as coordenadas erradas. Acha que espalha liberdade, mas distribui apenas o eco da sua própria ignorância feliz — como um cão que ladra à televisão, convencido de que ladra ao mundo.

Entretanto, o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se para um brunch de indignações. Discutiram a tonalidade exacta do termo “preocupante” e chegaram a consenso: deve ser pastel, inócuo e conciliável com todas as paletas ideológicas. Não se condenam crimes. Somente se “lamentam incidentes”. Não se protegem vidas. Protege-se a narrativa.

E é aqui, nesta elegância burocrática do abismo, que inauguramos a Primeira Vergonha Absoluta e Hipócrita Mundial™ — guerra sem guerra, cadáveres sem nome, civis sem perfil verificado. Uma guerra de maquilhagem moral, onde o sangue deve combinar com a moldura do telejornal.

Afinal, não é necessário exterminar um povo se se conseguir fazer com que ninguém o veja. A invisibilidade é o novo genocídio. Mais limpo. Mais digital. Mais fácil de integrar num carrossel de Instagram entre um brunch vegano e uma frase de Paulo Coelho adulterada para caber num tweet.

E não, não é a Terceira Guerra Mundial. É o reality show onde todos fingem que ainda há alguma coisa em jogo, quando o tabuleiro foi vendido à indústria da dissonância cognitiva há três temporadas.

A humanidade, essa diva em decadência, faz hoje o seu grande comeback — mas esqueceu-se de ensaiar. Tropeça em civis, esquece falas, e sorri para as câmaras. A plateia aplaude porque não sabe o que mais fazer. E o espectáculo continua.

Talvez um dia, algures entre uma explosão e uma partilha viral, alguém volte a perguntar se isto tudo faz sentido.

Até lá, aprecie o lençol europeu. É de algodão egípcio. E tapa quase tudo.

Quase.

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Editor Executivo. Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

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