Nascido em 1524, estamos em plena celebração dos 500 anos do nascimento de Camões, o tal poeta português que, para além do seu inegável génio lírico, foi também exaltado pela ditadura como símbolo da grandeza dos Descobrimentos e do Império Português.
Todavia, para o Partido Comunista Português, Camões era poeta do povo num mundo em mudança, lema com que inaugurou, no passado dia 20 de dezembro, na Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, uma exposição, integrada nas comemorações do V Centenário no nascimento do poeta. Esta visão do PCP é curiosa mas não recente, uma vez que já em 1957 o jornal Avante afirmava “só um regime democrático conseguirá elevar Camões aos eu verdadeiro lugar – o de magnífico cantor das coisas nacionais, das coisas humanas universais, do nosso povo – esse povo a quem um dia o Portugal livre e
independente, pacífico e democrático, tornará acessível a obra imortal de Luis de Camões”.
Quando chegou às Índias, logo denunciou que aquela terra era “mãe de
vilões ruins e madrasta de homens honrados”.
E naquela Índia portuguesa, cheia de aristocratas de segunda linha, a estalar de
ganância, mais que de nobres valores, surgiu um folheto – Disparates da Índia -, com sátiras que glosavam o envilecimento e a devassidão vivida em Goa, o que não agradou ao vice-rei. O retrato, anónimo, que acompanha este texto, representa Camões na prisão de Goa (1556).
“…Achareis rafeiro velho
Que se quer vender por galgo:
Diz que o dinheiro é fidalgo
que o sangue todo ele é vermelho…”
Foi preso e deportado para Malaca como soldado raso. Mais tarde, embarca na flotilha de Francisco Martins para os mares da China… Os Lusíadas são o grande poema da glória portuguesa. Mas na época foi mais que isso: a obra era também um libelo acusatório contra a degradação moral e política do reino. Tratava-se de um livro político e
didático.
«Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo, caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade.”
Camões não era um mero observador da história, mas sim um ativo participante, soube ser a voz do povo, dos lusíadas, da insubmissão ante os privilégios, do progresso social e cientifico, a voz da nação portuguesa, num elevado sentido humanista. Há mesmo quem
considere, como Ricardo Araújo Pereira, ser Camões o maior humorista português, comparável à sátira de Gil Vicente ou ao erotismo e brejeirismo de Bocage.
Camões era um espírito renascentista, humanista, cientifico. Quer descobrir o mundo, pensar o universo, cruzar os mares. Acredita no homem, no progresso, na ciência. Como referiu Paulo Raimundo, Secretário Geral do PCP, “as navegações portuguesas contribuíram
para inaugurar uma nova era do comércio mundial, abrindo caminho à crescente afirmação de um novo sistema social – o capitalismo na sua fase mercantil – em ruptura com o sistema de servidão feudal dominante na Europa”.
Foi com prazer que descobri o livro “CULTURA: uma nova história do mundo”, de Martin Puchner, da editora Temas e Debates, onde se aprofunda a importância da convivência entre os povos e da troca cultural, com um dos capítulos dedicado a Camões, designado como “Um Marinheiro Português Escreve uma Epopeia Global”. É um assunto
que desde há muito me interessa, chegando a alimentar um blog que denominei “O Futuro Mestiço”, na perspetiva de que a evolução da sociedade tenderá para uma cada vez maior miscigenação.
Essa nova sociedade multicultural raramente é justa e equilibrada – lembremos os colonialismos e o neocolonialismo onde se impõem culturas e sistemas sociais – mas acaba por sempre existirem trocas de ideias, tradições, música, sistemas sociais. Como se escreve no prefácio da referida obra, “nem sempre é uma história bonita, mas é a
única que temos”.
Migrações sempre fizeram parte da história, mas é inegável que com os chamados Descobrimentos a terra ficou “mais pequena”, surgia a noção de globalização. E a obra de Camões demonstra, com rigor, esses tempos de aventura, ganância, fanatismo, curiosidade. Não inventou, como os seus “mestres” Homero e Virgilío, nem exagerou como terá acontecido na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Camões viveu tudo o que narra nos Lusíadas, não foi “testemunha de ouvir dizer”. Apaixonou-se por uma chinesa com quem terá vivido, a quem chamou Dianamene, uma das ninfas aquáticas responsável por
inspirar os heróis gregos nas suas aventuras no mar, o que demonstra uma mente aberta a outras culturas. Passou “um mau bocado” em Goa, pelas razões acima descritas. Apercebeu-se da pouca receptividade de algumas gentes do Oriente relativamente à chegada dos portugueses, como que antecipando uma colonização não desejada, para isso
utilizando o deus romano Baco, a que os gregos chamavam Dionísio e associavam ao Oriente.
Os seus escritos demonstram que estudou os clássicos, na Universidade de Coimbra, onde um seu tio era reitor, tendo aplicado esses conhecimentos nas descrições da epopeia lusitana. Tinha também algum domínio da arte e ciência náuticas, obtidos nas
consultas à Casa da Índia, onde se arquivavam todas as informações trazidas pelos navegadores. Os reis portugueses já tinham noção da importância da informação e do seu tratamento técnico e documental!
Designar Camões como revolucionário é afirmação que não pode ser vista aos olhos dos dias de hoje. Não há em Camões a mínima base incompatível com a existência da Inquisição e da escravatura, ou de outras injustiças e mesmo atrocidades cometidas pelos portugueses. Mas o seu espírito encerrava uma visão progressista, num mundo onde
a voz do povo pouca forma tinha para se fazer ouvir.