Na Assembleia da República, a política deveria ser um espaço de debate elevado, onde a dignidade humana e o respeito pela diversidade fossem os pilares das discussões. No entanto, nos últimos tempos, fomos confrontados com uma das cenas mais desoladoras da nossa história política recente, protagonizada por alguns deputados da bancada parlamentar do partido Chega. O episódio de humilhação direcionado à deputada Ana Sofia Antunes, do partido Socialista, por parte de membros do Chega, revela a crua realidade de um grupo político que parece ter perdido a capacidade de distinguir a política do deboche e a crítica construtiva do ataque pessoal.
Ana Sofia Antunes, uma deputada invisual, foi alvo de uma série de comentários ignóbeis que ridicularizaram a sua condição de deficiência visual. As palavras da deputada Diva Ribeiro, acompanhadas de apartes cruéis da bancada, não só atacaram a sua capacidade profissional, mas reduziram-na ao estigma da sua deficiência, como se a sua valia política fosse subjugada pela sua condição física. A acusação de que só seria capaz de intervir em temas relacionados com a inclusão é uma tentativa grotesca de desqualificar alguém que, como Secretária de Estado da Inclusão, já demonstrou mais competência e compromisso do que muitos daqueles que agora a atacam.
O mais lamentável deste episódio não é apenas a falta de respeito e sensibilidade para com uma colega parlamentar, mas o fato de que estes ataques partem de um partido que, em muitos momentos, se auto-intitula como defensor dos valores da “moralidade” e “respeito”. A grande ironia é que, ao lançar tal calúnia, a bancada do Chega revela-se como uma das maiores caricaturas de intolerância que já assistimos no Parlamento. Quando utilizam a condição de uma pessoa para a desvalorizar, o que vemos não é política. Vemos um ataque visível à dignidade humana, um desprezo pela ética e um sinal de um partido que se afunda cada vez mais no poço da insensatez.
O presidente da Assembleia da República, Aguiar Branco, deveria ter tido uma postura clara e firme diante desta situação. Era sua obrigação não apenas fazer uma chamada de atenção aos deputados envolvidos, mas também agir como um moderador daquilo que são as mínimas normas de respeito e civilidade que devem prevalecer na Assembleia. O que vimos foi uma postura silenciosa e apática, deixando que o debate político se transformasse numa cena lamentável de agressão verbal e preconceito. A sua omissão apenas torna ainda mais evidente a fragilidade das nossas instituições perante a crescente falta de escrúpulos de quem se diz representante do povo.
E é verdade que o político e o político de “primeira linha” são muitas vezes elevados a figuras que, pela sua condição, merecem uma análise crítica das suas capacidades e escolhas. No entanto, quando se ataca a integridade de alguém por razões puramente pessoais ou físicas, estamos a abandonar o campo da crítica legítima e a cair num abismo de maldade e intolerância. Ana Sofia Antunes não só provou a sua competência e dedicação ao serviço público como Secretária de Estado da Inclusão, como também tem sido uma voz ativa e respeitada dentro da Assembleia. Não precisamos de mais provas do seu trabalho e do seu empenho para perceber que ataques como os que sofreu não têm outro propósito senão o de humilhar e degradar.
A estes, que apelam ao regresso de um país imaginário onde o preconceito e a divisão eram aceitáveis, a minha resposta é clara: a política deve ser um espaço onde a pluralidade é valorizada, onde a inclusão é uma obrigação e onde a dignidade de cada ser humano deve ser respeitada, independentemente da sua condição física, mental ou social. As observações de desprezo e desrespeito apenas refletem a mediocridade moral daqueles que, incapazes de vencer pelo mérito, tentam desvalorizar os outros.
E a verdade é que, mesmo que esta situação tenha sido “mais um episódio” de uma longa lista de momentos de insensatez e intolerância no Parlamento, o seu impacto é significativo. A cada novo ataque, o Chega vai-se afastando mais do que poderia ser uma verdadeira contribuição política. A partir do momento em que a política se mistura com o desrespeito e a falta de ética, já não é política. É show. E quando o “show” é pago com a dignidade de alguém, todos temos que perguntar: até onde estamos dispostos a deixar que o ódio e a intolerância tomem conta do nosso futuro político?
Por fim, é necessário que, enquanto sociedade, não permitamos que este tipo de comportamento tenha espaço. O preconceito e o insulto não podem ser ignorados em nome de uma suposta liberdade de expressão. A Assembleia da República deve ser um exemplo de respeito e inclusão, e aqueles que não cumprem esse papel devem ser responsabilizados. Ana Sofia Antunes merece mais do que um simples pedido de desculpas. Ela merece ser reconhecida pelo trabalho árduo que tem feito, pela coragem de representar a diversidade e pela força de se manter de cabeça erguida, mesmo diante da ignorância. E, sobretudo, ela merece um Parlamento que não só a respeite, mas que, acima de tudo, a valorize.