Os filhos da puta conseguiram matar-te muitos anos depois. Decerto sorriem para dentro das lapelas e, finalmente, podem livrar-se do nosso cravo. Do nosso, não. Esse não desaparecerá nunca. Lembras-te? Ali na Cardal de S. José, vinhas do médico, e eu disse-te: “Não, quero mesmo um cravo pelas suas mãos.” Tu respondeste: “Para quê, menino? Isso não vale nada. Agora dar-te um cravo…. Dou-te é um beijinho.” E eu, torto, disse-te: “Quero os dois, o beijo e o cravo.”
Como já sabias que eu andava sempre a rir e que namorávamos à varanda, lá pelas onze, eu esperava-te. Se demoravas, batia-te ao postigo da janela. Se nada, corria escada abaixo a perguntar se sabiam de ti. E as nossas amorosas vizinhas diziam: “Foi ao médico.” “Foi para cima com a família.” “Foi ali à farmácia.”
Lindas, as meninas da Cardal de S. José. E linda tu, Celeste, que me deste conversa vida fora, sempre com uma simplicidade e uma doçura ímpares. Às vezes, quando a conversa ia para aqueles lados mais duros, como os dinheiros, os medicamentos que eram demais na carteira, a couve que ficava para amanhã, a lágrima vinha-te ao olho esquerdo, o que estava mais próximo de mim, na varanda. Eu dava-te a mão, apertava, fazia-te festinhas com a esquerda e tentava levantar-te o ânimo. Tu eras tal e qual a minha avó materna: ouvias, sentias, agradecias, mas sabias demais da racionalidade da vida, e as minhas palavras apenas entravam como as de um amigo que te queria bem, mas não ia resolver nada.
“Isso, quando chega o tempo, aparecem-me sempre esses a querer fotografias e a fazer perguntas. Eu já respondi a tudo, não sei mais nada”, dizias, quando um dia te confessei que tinha feito parte da chusma de putos que os chefes mandavam fazer “a senhora dos cravos”.
A mim calhou-me 1999, antes do fim do mundo. Tu não te lembravas e eu só queria esquecer, porque foi uma entrevista tão estúpida e um texto tão rasca que tive vergonha dele até te conhecer, vizinha e amiga. A bodegada saiu no morto 24horas, a mando do meu querido José Rocha Vieira, que às tantas, quando entreguei o relato, disse: “Bela merda!”
E tinha razão. Mas um dia o Ricardo Sousa disse: “Tenho ali espaço para a nossa associação, a Rossio, na Cardal de S. José.” E fomos todos: a Inês, eu, o André, o Ricardo, claro, o Jonas, o Tuna, o Quaresma, o Francisco, o Alfredo, o João Carlos, as enormes Edla e Rita… Esta gente ninguém conhece, mas pouco importa. Porque todos e todas ficaram a conhecer-te e sei que hoje te recordam de um modo diferente da maioria. Pegaram-te nas mãos que deram os cravos aos nossos soldados à hora de almoço daquele dia lixado e trinado. A todos nos deste sorrisos, amor de olhar, calor.
A gente a inventar jornais e revistas, e tu a sorrir, sem querer saber. “São os miúdos que estão aqui ao lado…”
Deixo para os jornais, se ainda os houver, que contem a tua narrativa. Amo-te, Celeste, por teres a coragem de dizer a um magala:
“Tabaco, não tenho, não fumo.” E ficares a olhar para ele com pena, e ele dizer: “Então dá cá uma flor dessas.” E assim se começou tudo e aqueles que não “se enganaram”, como dizia e bem o José Mário Branco, beijam-te pela simplicidade, pela inocência mantida até ao fim.
Sabes, Celeste, leio as notícias. Mataram-te. Sim, admito, processem-me. É só mais um. Conta o Sérgio A. Vitorino no jornal Correio da Manhã:
«Nessa unidade hospitalar foi submetida a análises e a um electrocardiograma. Mas como no período nocturno não há raio-X no Hospital de Alcobaça, o médico decidiu transferi-la para o Hospital de Leiria, já a receber oxigénio. Entrou com pulseira amarela e ficou à espera do raio-X e de um cardiologista.
“Esta manhã foram encontrá-la em paragem cardiorrespiratória. Ao que parece estava sozinha numa sala à espera”, lamentou a neta.
O pessoal médico ainda tentou manobras de reanimação, mas sem sucesso e o óbito foi declarado no local.
Devido às circunstâncias da morte, o Ministério Público deverá solicitar a realização de uma autópsia.»
O QUÊ, Celeste?? “Esta manhã foram encontrá-la em paragem cardiorrespiratória”???? Mas que merda é esta? É como se encontram os gatos vadios à beira da estrada?
Não.
Não quero saber quem é governo, quem são os partidos, quem vive no Big Brother, quem canta nos coliseus. Puta que os pariu. Nem com a nossa menina houve cuidado. Iro-me.
Portugal que se demita.
Até já, meu amor.