A morte do general Vasco Rocha Vieira, o último governador português de Macau, chegou hoje como uma notícia que nos faz lembrar, com ares de saudade e algum espólio de ironia, uma era que se esvaiu com o processo de devolução do território à China. Ele partiu aos 85 anos, mas, para quem teve o privilégio – ou o peso, como diria ele – de o conhecer, o eco de sua figura robusta continua a ressoar nos corredores de Macau e da política nacional. Ao pensar nele, recordo-me não de um militar rígido ou de um governante que impusesse a sua autoridade à força, mas sim de um homem imbuído de um sentido de dever intransigente, que soubera cultivar uma relação de proximidade com a imprensa, mas também de fricção, como só as grandes figuras sabem fazer.
Lembro-me dos tempos em que, nos anos 90, enquanto jornalista no Jornal de Macau, íamos muitas vezes, eu e o saudoso jornalista Josué da Silva, à residência oficial de Vasco Rocha Vieira, no Palácio da Praia Grande, onde ele nos recebia. Não eram encontros formais, nem sempre agradáveis, mas sempre com uma aura de respeito mútuo, em que se discutia o futuro da nossa terra e os delicados passos que Portugal dava na sua última etapa em Macau. E, sim, os almoços e jantares, quando aconteciam, eram o palco perfeito para uma troca sincera de informações, entre sorrisos e tensões. Porque, mesmo quando discordávamos, o que se mantinha intocado era o dever da informação, que ele, com o seu caráter patriótico e o sentido de Estado, sabia respeitar. Não posso deixar de recordar as discussões, com Josué a pôr em palavras o que, na nossa visão, eram os pontos de crítica a uma política que parecia querer agarrar-se à nostalgia imperialista e ao mesmo tempo preparar a passagem de testemunho para a China. Ele, Rocha Vieira, como o militar que era, exibia uma lucidez política rara, por vezes irrepreensível, mas também marcada por uma série de controvérsias.
O “caso Jorge Álvares”, por exemplo, uma fundação financiada com dinheiro macaense, que ele propôs ao presidente Jorge Sampaio, a dois meses de abandonar o cargo, não foi, digamos, a melhor maneira de encerrar o ciclo. A ideia de criar um legado “patriótico” que tivesse a sua assinatura não caiu bem, e o desentendimento com o presidente foi a prova de que, por mais que se quisesse travar um sentido de Estado inabalável, as relações pessoais e políticas nem sempre são tão claras quanto o idealismo sugere.
O fato de ter sido o último governador português a governar Macau marca, sem dúvida, um simbolismo que perdura até hoje. Não é à toa que o momento da transferência da administração para a China é lembrado como uma demonstração de patriotismo e serviço público. Mas não nos enganemos, também foi um momento tenso, com todos os ingredientes de uma mudança que não deixava de ser histórica e complexa. O que se seguiu depois é a crónica de um futuro que já estava a ser desenhado de outra forma, sem as cartas de Portugal na mesa e com o olhar atento de Pequim a observar cada movimento.
A sua figura, com todo o seu passado militar e político, é hoje recordada não apenas pelos seus feitos, mas também pelas contradições que o acompanharam. Vasco Rocha Vieira foi, sem dúvida, um homem de forte personalidade, de um patriotismo que se queria inabalável, mas também de decisões polémicas que mostraram que, por trás do rigor militar, existiam as ambiguidade próprias de quem se viu entre dois mundos e teve de navegar as águas turvas do fim de uma era.
Agora, quando olhamos para o seu legado, talvez seja justo dizermos que a sua história em Macau, entre almoços, jantares, pressões políticas e mudanças inevitáveis, é uma história que, tal como ele próprio, se situa na fronteira entre a memória e o esquecimento. Um último governante que, por mais que fosse tentado a alicerçar a sua imagem numa causa maior, também teve os seus momentos de falibilidade.