Ao ver fotografias antigas, apeteceu-me escrever sobre meu pai, António Correia, querido companheiro de sempre. Frágil, mas com um coração imenso e pronto a apoiar e respeitar não apenas a família e amigos mas toda a gente com quem trabalhou – uma vida ligada às bibliotecas de Coimbra, Lisboa e Angola – assim praticando ideias de solidariedade, liberdade e justiça, teve sempre na minha mãe suporte nos momentos psicologicamente mais difíceis.
Os amigos, sempre os amigos, ou não pertencesse à geração coimbrã, onde a amizade era cultivada e deixava marcas eternas, bem expresso no poema de Joaquim Namorado, poeta do neo-realismo com quem na Serra da Boa Viagem os mais velhos passavam horas
partilhando histórias de luta, com o mar da Figueira ao fundo.
Eu e tu, que não sei quem és, que não sabes quem sou:
— Eu e tu: Amigo! Milhões!
Eu, pequenito, admirava a alegria e força que emanava daquela figura de onde brotavam palavras irónicas e sarcásticas Aventura nos Mares do Sul:
“Eu não fui lá…”
Por vezes por lá passava outro amigo afamado, Alberto Gomes, jogador da briosa Académica e seleccionador Nacional de Futebol, vindo sempre à baila o ano famoso
de 1939, data em que a Associação foi a Lisboa vencer o Benfica por 4-3 e conquistar a Taça de Portugal, com o Alberto Gomes a avançado, pedindo à malta da
universidade.
Senhores lentes, um pedido
Não o deixeis avançar
Que avance para as balizas
O “resto” pode esperar
Envio um grande abraço ao seu filho Nito, que nunca deixa de estar presente nas homenagens a seu pai, como aconteceu em 2016 na celebração do centenário do nascimento do futebolista que diversas vezes representou a seleção nacional, além de ter sido, como referi, selecionador Nacional. Nos encontros de família nos anos 60, lembro que se discorria sobre as sua amizade com o Eusébio, jogador do Benfica e da seleção.
Neste relembrar de alguns amigos do meu pai, não podia esquecer Felisberto Lemos, Livreiro da Esperança que conheci desterrado em Angola, a quem Manuel Alegre dedicou os versos.
Há homens que são capazes de uma flor onde as flores não nascem. Outros abrem velhas portas em velhas casas fechadas há muito.
Outros ainda despedaçam muros acendem nas praças uma rosa de fogo. Tu vendes livros quer dizer entregas a cada homem teu coração dentro de cada livro Na Ilha de Luanda, os domingos eram passados em amena cavaqueira e “a encher o bandulho” (termo coimbrão) nos idos anos de 60. Isto os “cotas”, claro, porque a malta nova preferia os bronze na praia ou as jogatanas de volley improvisado.
Foram bons tempos esses em Luanda, com a Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Angola a organizar actividades diversas, que também serviam como cobertura para tertúlias clandestinas em sala interior da livraria Lello, onde se escondiam livros
que apoiavam a independência de Angola.
Recentemente o seu filho Carlos Lemos, com a nossa amizade a surgir nos tempos africanos, lembrou-me que o seu pai fora agraciado com a Ordem da Liberdade pelo Presidente da República Mario Soares, em 1994.
Deixei para o fim quem melhor conheci, o seu amigo António Gusmão Franco, mais conhecido por Eng.º Franco (meu pai acrescentava sempre “com o seu cachecol branco”), tantas cenas eu ouvi pelos dois narradas, algumas que nem dá para contar. Ainda agora nos divertimos, eu e a Ana Carolina, a Lininha que era tudo para esse grande amigo de meu pai, recordando estórias e estorietas de Coimbra e não só, que a amizade se manteve pelas décadas seguintes à partida para Lisboa dos dois compadres e respetivas famílias. Quando faleceu, o seu companheiro Correia escreveu em O Despertar.
soavam alto as suas gargalhadas
abertas, tanto como sempre estava
aberto o seu puro coração, a tudo
que fosse camaradagem e bondade
Entre 1994 e 1996, já a caminho dos oitenta, meu pai escreveu crónicas para o jornal O Despertar, publicado em Coimbra, onde mostrava a sua aversão às praxes estudantis e narrava boémias comentando figuras como Fernando Namora (“no livro Fogo na Noite Escura, está bem patente o carácter burguês da generalidade da estudantada coimbrã da minha geração”), Vergílio Ferreira (“poeta de capa e batina sempre rezingão, inquieto e por vezes amargo”), Joel Mascarenhas (“o violino foi o seu irmão mais amado”), Álvaro Cunhal
(sim, esse, o “primo” que, clandestino, se escondia no sótão da casa da Figueira) e tantos outros, além, claro, dos amigos acima mencionados. Em 1998 compilei esses textos que, ainda em Macau, publiquei em livro com o título “Da Minha Geração…Crónicas da Vida
Académica Coimbrã”