Há dias, um camarada de desventuras confidenciou-me, entre copos de água tónica (a única bebida que não o liga a algoritmos), que ponderara processar a sua operadora de comunicações. Motivo? Três dias de exílio digital: telefone fixo mudo, televisão apagada, internet reduzida a um vácuo pós-moderno. Três dias. Tempo suficiente para redescobrir a voz humana, ler meia página de Saramago sem interrupções, e perceber que os putos ainda têm rostos, não apenas emojis. Mas desistiu. Sabia que perderia. Num país onde o Código Civil parece escrito em código binário, processar uma operadora é como desafiar o Minotauro sem fio de Ariadne: entras no labirinto, e ele come-te a pacote ilimitado. (Sem segunda intenção do próprio Minotauro).
A avaria, claro, resolveu-se. Como por magia. Ou melhor: como por contrato. No exacto momento em que o meu amigo começava a gostar do silêncio, eis que o ruído óptico regressou, trazendo consigo 127 notificações, um episódio de Love On The Spectrum em streaming, e a certeza de que, afinal, a pior solidão é estar sozinho com 500 canais de televisão. A “nova normalidade”, dizem eles. Eu chamo-la de “síndrome da tomada reencarnada”: só existimos enquanto houver luzinha azul a piscar no router.
Imaginem, caros leitores, um mundo onde as operadoras não vendem serviços, mas sim estados de graça. Um mundo onde o “fibra óptica” não é tecnologia, mas religião. Onde o sacerdote, de crachá a brilhar, profetiza: “Aqui tem 500 Mbps de salvação, meu irmão, e um deus-menino a chamar-se HBO Max para lhe iluminar o caminho.” Não é ficção. É o presente. Segundo um estudo da ARMACOM (2023), 78 por cento dos portugueses “preferem” perder um familiar a ficar sem Wi-Fi durante uma final da Champions. E não me venham com moralismos: se o Infante D. Henrique tivesse fibra óptica, ainda hoje estávamos à procura das Índias.
A lógica é simples: primeiro, isolam-nos em casa com a promessa de “conexão total”. Depois, cortam-nos a ligação até implorarmos por mais um gigabyte de misericórdia. É a dialéctica do router: crias o problema, vendes a solução, e ainda ganhas um prémio de “Melhor Serviço ao Cliente” enquanto os clientes esperam 45 minutos para falar com um robô que cita Fernando Pessoa em loop. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, diz a voz automatizada, antes de desligar.
O Golpe Final
Mas ei-los que regressam, os desligados. Ei-los que, entre duas falhas de sinal, descobrem um segredo ancestral: o “offline” não é avaria. É resistência. Enquanto as operadoras nos vendem velocidades de download que rivalizam com a queda de Ícaro, a verdadeira revolução acontece nos interstícios da desconexão. O meu amigo, cismado, não processou ninguém. Percebeu, demasiado tarde, que o tribunal já está ocupado: são as operadoras que nos julgam, diariamente, por crimes de não-consumo.
E, no entanto, há esperança. Numa esquina de Lisboa, um grupo de hereges reúne-se às quartas-feiras para jogar sueca sem fotografar as cartas para o Instagram. Noutra, um poeta marginal escreve sonetos em papel de pão, ignorando os emails da editora. São actos mínimos, quase imperceptíveis. Mas lembrai-vos: até o Grande Irmão, um dia, teve de reiniciar o modem.
Nota do Autor: Nenhum router foi ferido durante a escrita desta crónica. Mas três operadoras já enviaram SMS a oferecer “pacotes emocionais” para ultrapassar a tristeza da desconexão. Coitadas. Acham que a alma se mede em megabytes.