Morreu Gene Hackman. Não, não era o Super-homem, mas fez-nos acreditar que até um vilão de cabeça brilhante e planos imobiliários dúbios com a nova Lei dos Solos, podia ter mais charme que um herói de capa. Nietzsche, lá do seu túmulo filosófico, deve ter sorrido: afinal, ambos — o filósofo e o actor — brincaram com a ideia de que alguém, algures, poderia ser mais que humano. Entre o absurdo e a genialidade, cá estamos nós, plebeus do quotidiano, a perguntar: quem precisa de um Super-homem quando temos “um rural” da esquina a resolver crises com uma chávena de café e um “isto não se faz, pá!”?
Nietzsche, o homem do bigode que desafiava gravidade, anunciou a morte de Deus como quem anuncia que o último pastel de leitão acabou. Tragédia? Talvez. Mas também oportunidade: no vácuo divino, surgiria o *Übermensch*, um ser capaz de dançar sobre os escombros da moralidade antiga. Só que, em vez de um iluminado, o que veio foi o Super-homem de Hollywood: Christopher Reeve a voar com a graça de um peru em êxtase e Hackman, de fato branco imaculado, a rir-se do caos como um avô malicioso.
A nossa cultura, essa mestra na arte de desconfiar até da sombra, reagiu como sempre: “Super-homem? Óptimo. Que venha cá abaixo pagar a renda da casa e explicar a linha de Sintra”. Até Fernando, na sua tabacaria existencial, teria suspirado: “O herói é sempre o outro, o que não tem de aturar filas no multibanco”. E não faltou quem, entre um gole de ginjinha, lembrasse que o verdadeiro super-homem português foi talvez o Salazar, que prometeu riqueza e deu… silêncio.
Eis Hitler, o Super-homem que Preferia Botas a asas!
Aqui, caro leitor, a comédia torna-se um pesadelo. Nietzsche sonhava com criadores de valores; Hitler sonhava com impérios. O führer agarrou o *Übermensch* como um ‘influencer’ e agarra um #hashtag — distorcido, simplificado, transformado em arma. De repente, o “superior” não era quem criava, mas quem destruía. O filósofo, que já padecia de saúde frágil, deve ter revirado no túmulo: “Mein Gott, não era isto que eu queria!”.
Enquanto isso, Hackman, como Lex Luthor, dava-nos a versão pop dessa distorção: um vilão que acreditava piamente que roubar terrenos era mais nobre que salvar o mundo, aproveitando-se da nova lei dos Solos. “Se não posso ser herói, serei o pior bairrista de Metrópolis”, diria ele, se falasse português. E nós, pobres espectadores, ríamos como quem ouve uma piada sobre o desemprego: com um nó na garganta. Zeca, inadvertidamente, resumiu a ironia: “Que amor não seja eterno / posto que é chama”. Pois. E que o Super-homem não seja real, posto que é utopia.
A revelação: Nietzsche e Hackman, afinal, eram dois mal-entendidos. O primeiro queria que fôssemos superiores a nós mesmos; o segundo mostrou que até os vilões têm dias maus. E no meio disto tudo, o que sobrou? A humanidade. Sim, essa coisa frágil, cheia de vícios e piadas de mau gosto, que insiste em rir quando devia chorar.
O verdadeiro twist é que o Super-homem nunca existiu — e ainda bem. Porque quem precisa de um salvador em collants quando temos a Dona Celeste, da mercearia, que sabe quem precisa de fiado? Ou o senhor António, que conserta torneiras e ouve desabafos como se fossem sinfonias? Nietzsche diria que são “últimos homens”, nós chamamos-lhes heróis do pão nosso de cada dia.
Logo, um Brinde a Hackman!
Morreu Gene Hackman, sim. E com ele parte um pedaço da nossa inocência — aquela que nos fazia acreditar que um actor norte-americano podia ser mais português que o Zé do Telhado. Imagino-o, lá no além, a discutir com Nietzsche: “O seu Super-homem era um deprimido, Friedrich! O meu pelo menos tinha um “amigo” chamado Otis!”.
Agradeçamos-lhe, não pela grandiosidade, mas pela humanidade. Por nos mostrar que até os vilões têm medo de envelhecer, que até os carecas podem ser icónicos, e que, no fim, o que fica são as gargalhadas — mesmo as que doem.
Descanse em paz, Gene. E Nietzsche, se estiver por aí: a próxima imperial é minha. Mas aviso já que não percebo um corno de alemão!
—
*P.S.: Nenhuma referência cultural foi maltratada nesta crónica. As licenças poéticas, essas, foram tomadas com a mesma leveza com que se apanha o sol da tarde. E os erros de ortografia? Esses mantêm-se fiéis ao pré-AO90, como um bom entendedor.