Chama-se Martinho (Martín, que os espanhóis é que o baptizaram). Não é santo, nem rei, nem sequer o nome de um cão de raça indómita. É, antes, a alcunha de uma tempestade que varreu o país com a delicadeza de um elefante numa loja de cristais. Martinho: nome que evoca bebés de cachecol tricotado por avós com MBA, pais que sonham com SUVs blindados contra a plebe e contas bancárias que exibem, orgulhosas, o saldo de um milhão no MBWay — cifra suficiente para comprar um apartamento em Lisboa ou uma ilusão de grandeza.
Enquanto o vento torcia postes como espaguete ‘al dente’ e a chuva convertia Santarém numa Veneza de estacionamentos proibidos, o cidadão comum perguntava-se: como é possível que, em quarenta anos de democracia, a única estratégia contra inundações seja esperar que a água evapore por vergonha alheia? Santarém, outrora capital do gótico ribatejano, é agora uma piscina pública não declarada, onde os peixes substituíram os turistas. E as autoridades? Ah, essas encontram-se ocupadas a partilhar memes no Twitter sobre “resiliência lusa”, enquanto delegam a solução para a próxima.
O Desespero como Política Pública
Perante tamanha tragédia, o instinto humano clama por acção. Mas este é Portugal, onde a acção se resume a uma telenovela das 21h. A Esquerda Europeia, com o seu humanismo de café com leite, sugere diálogo, painéis solares e quotas de género nos barcos salva-vidas. A Direita, entretida a privatizar a culpa, propõe um referendo sobre se a água da chuva deve ser considerada de direita ou de esquerda. Enquanto isso, o cidadão médio, já sem paciência para utopias, limita-se a estacionar o Fiat Punto no telhado e a rezar para que o Seguro (aquele deus caprichoso das empresas, não o candidato) lhe sorria.
Os especialistas, claro, não falham. Emergem das tocas televisivas para explicar, com gráficos em PowerPoint, que “chuva é quando água cai do céu” e que “a solução é não morrer”. Um deles, mais ousado, aventura-se a citar Homero — mas, detectando a proibição editorial, corrige-se: “É uma epopeia líquida, caros espetadores!”. As redes sociais, entretanto, fervilham de influencers a vender cursos de natação urbana e ‘coaches’ espirituais a garantir que “afogar-se é uma escolha”.
E o Estado? Bem, o Estado está a postos. Após quatro décadas de hibernação criativa, anunciou um plano revolucionário: formar uma comissão para estudar a possibilidade de criar um grupo de trabalho destinado a analisar a viabilidade de contratar consultores que avaliem a compra de baldes. Prioridades.
O Paraíso (Ironicamente) à Venda
Mas eis que, quando a tragédia atinge o clímax, surge a reviravolta, digna de uma comédia divina: a tempestade Martinho, afinal, não era um castigo dos deuses, mas uma oportunidade de mercado. A TEMU, loja virtual onde se compra de tudo — desde candeeiros em forma de unicórnio a diplomas de doutoramento honoris causa —, revelou-se a verdadeira salvadora da pátria. Se Santarém está submersa, por que não vendê-la como destino premium para amantes de natação urbana? Se os rios transbordam, por que não alugá-los como ‘spas’ naturais?
As autoridades, despertas pelo som de caixas registadoras a tilintar, agiram com celeridade nunca vista. Lançaram o programa “Portugal: Veneza do Ocidente (Edição Limitada)”, oferecendo vouchers para passeios de caiaque em auto-estradas alagadas e cursos de arquitectura aquática. Até o cidadão mais céptico rendeu-se: quem precisa de esgotos funcionais quando se tem um guarda-chuva da TEMU, resistente a ventos, críticas e discursos os com perdigotos?
No país onde o desastre é merchandising e a incompetência se disfarça de criatividade empresarial, encontramos o nosso final feliz. Martinho, o furacão queque, não trouxe destruição — trouxe ‘conteúdos’. Os portugueses, sempre engenhosos, aprenderam que, em vez de exigirem infra-estruturas, basta encomendarem a próxima ilusão por correio. E as autoridades, satisfeitas, podem regressar ao seu sono profundo, sonhando com o dia em que uma tempestade se chamará Elon ou Kim Kardashian. Até lá, resta-nos nadar. Ou comprar um guarda-chuva maior.