“O primeiro carro que eu tive, quando tive que o entregar… a sério, o primeiro carro que comprei… quando tive que o entregar… aquilo foi… pá, foi ali um sentimento muito… de grande frustração entregar o carro. Mas ele também não era um calhambeque para eu o guardar porque, se fosse um calhambeque, se fosse uma coisa… assim uma peça absolutamente histórica e tal, guardava porque valia muito dinheiro. O carro também não era nenhuma peça do outro mundo… tinha o seu valor, como é evidente, sentimental, mas tive que o entregar porque eu tinha que ir para Lisboa e precisava… e não podia ficar no caminho”.
Foi assim, com esta absurda e indigna analogia, que o presidente da Câmara Municipal de Abrantes explicou na terça-feira o que representa para ele o antigo edifício do Mercado – pérola urbanística e ícone patrimonial da cidade e do concelho – e a estúpida decisão de o demolir, decisão essa consagrada no passado dia 7 com o lançamento da empreitada de construção de um novo edifício Multiusos, precisamente onde está o vetusto Mercado. É patente a falta de cultura e conhecimento para dar valor ao que tem realmente valor e a falta de inteligência e competência para pôr esse valor ao serviço da comunidade, beneficiando – de todos os pontos de vista – o território e as pessoas.
A contemplar-nos há 92 anos – muito mais do que nós o contemplamos a ele, como deveríamos – o “Mercado Coberto” (assim designado em 1933) foi – não por acaso, mas pela cultura e visão de grandes abrantinos – requalificado 15 anos depois com o traço modernista do arquiteto António Varela e o projeto do engenheiro-poeta Jorge de Sena (por alguns considerado “a mais importante personalidade literária do século XX português, depois de Fernando Pessoa”), fechado compulsivamente pela ASAE em 2010 e definitivamente abandonado pelo incompetente (ou não…) proprietário e gestor municipal em 2017, depois de o instalar num edifício (em altura) construído de raiz, inapropriado para mercado diário e aonde ninguém vai.
A referida empreitada prevê explicitamente a demolição integral do edifício existente, o que inclui, obviamente, as suas fachadas principais, bem como os painéis de azulejos que encimam os dois portões de entrada. Fica, assim, consumada a “demolição e substituição do edifício do Mercado por edifício-fronteira”, inscrita no PUA – Plano de Urbanização de Abrantes em 2016, e autorizado o gasto de 6,7 milhões no novo Multiusos – que já vai em 8 e se teme que ultrapasse os 12 milhões de euros – quando, no edifício construído há uma década para confinar “às moscas” o mercado diário e que indignou grande parte da sociedade abrantina, foi gasto “apenas” um milhão e meio.
Fica assim, também, exposta a chusma de hábeis narrativas, mentiras, falácias, contradições, eufemismos, verdades alternativas e enganos que o Secretariado do PS Abrantes e a maioria autárquica socialista na Câmara e na Assembleia Municipal, foi largando nos últimos 10 anos para conseguir concretizar os seus intentos – urbanísticos ou outros – sem comprometer os processos eleitorais, ludibriando as restantes forças políticas, a cidadania abrantina e a generalidade dos cidadãos. Todavia, como bem se sabe, o diabo inculto está nos detalhes e o destino apeado das fachadas principais e dos painéis de azulejos promete não deixar o malvado demónio em paz…
Na Reunião de Câmara do dia 21, os Amigos do Mercado de Abrantes fizeram uma intervenção de fundo no período aberto ao público, em que afirmaram “temos a consciência de que fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para evitar um erro histórico e um atentado patrimonial à nossa cidade e ao nosso concelho. Um erro que, a concretizar-se, será exclusivamente imputado a si [Sr. Presidente da Câmara] e aos que o apoiam nesta decisão, e que nós quisemos evitar” e pediram esclarecimentos concretos, nomeadamente sobre a demolição das fachadas, sobre a destruição dos painéis de azulejos e sobre o não regresso do mercado diário ao seu berço histórico.
O edil não respondeu a nenhuma destas questões, mesmo depois de instado repetidamente a fazê-lo, preferindo ignorar acintosamente o apelo dos cidadãos e recorrer à néscia metáfora do “chaço velho” para caracterizar o edifício histórico do Mercado e a sua decisão de o demolir para construir um Multiusos custoso, inapropriado e mal localizado, sem a debater com os deputados municipais, os movimentos de cidadãos ou outra qualquer entidade democrática. Para Manuel Valamatos, aquilo que ali está nem categoria tem para se equiparar a calhambeque, não tem qualquer singularidade ou valor histórico-patrimonial e quem o defende não passa de um punhado de gente sentimentalista que atrapalha o caminho do autarca para a capital. Falta saber que caminho é esse e se, desta vez, não ficará mesmo apeado.
Quanto à fatídica demolição do bem patrimonial, incluindo os dois singulares painéis de azulejos, fica o fervoroso apelo a todos os leitores para que a indignação se alargue urgentemente a todos os portugueses (denunciem, por favor!), pois o património municipal é também, por natureza, riqueza patrimonial de Portugal.