Por vezes olhamos para trás e ficamos na dúvida se certas memórias serão verdadeiras, ou não passam de cenas nascidas de filme ou livro que nos marcou, quem sabe de mero sonho. Já vos aconteceu isto?
Conheci-a quando visitava o Templo de Mahabodhi, em Bombaim, disse chamar-se Rati, como a deusa indiana. Conversámos, bebemos chá (ela disseadorar café…), falámos sobre religião e ela contou-me a história da tal Rati, deusa da paixão, que se tornou invisível por
inveja de Shiva, que lhe enviou um relâmpago. O seu olhar fixava o horizonte quando afirmou constar “que ela paira acima dos amantes e faz com que se abracem sem ser notada”. Depois sorriu e mudou de conversa, eu confesso que fiquei “a navegar…”
Tirara um Mestrado em Estudos Budistas, Filosofia e Religiões Comparadas, na Universidade de Alanda , em Rajgir, no norte da India. Propôs-me ir visitar a
região, “olha que tanto o Buda quanto o Mahavira afirmaram ter passado algum tempo lá, atribuindo-lhe enorme importância espiritual e religiosa. Existem fascinantes fortes, cavernas escavadas na rocha, inscrições em conchas, ruínas budistas, templos hindus e túmulos muçulmanos… e poderemos tomar banho nas suas fontes termais naturais”!
Tinha tempo, algum dinheiro e vontade (condições essenciais para uma viagem
mais demorada), resolvi acompanhá-la nessa atraente visita. Haveria muito que contar dessa viagem, mas o que mais me marcou foi a estranha relação que mantive com a minha companheira, tão surpreso e baralhado que fiquei.
Passeávamos abraçados e trocávamos inocentes carinhos, enquanto me falava da deusa que descobri representar uma estranha forma de erotismo. Na fachada dum templo, junto a uma escultura de Rati, encontrei estes curiosos versos. Não era amor, Não era deleite ardente. Era apenas o erotismo da espera, da dúvida, do meio caminho entre o querer e o
ceder. (…) que só mais tarde percebi, com a ligação que entre nós surgiu, onde ela, por graça, assumiu ser a “verdadeira Rati”!

Era um desejo não assumido, que não respondia às caricias recebidas mas aceitava, como se não existisse culpa por não serem pedidas ou correspondidas. O seu corpo sentia frenesim, ou pelo menos era essa a minha esperança, mas permanecia estático e passivo. Abraçava, deixava-se beijar nesse abraço, corpos colados como se fosse natural entre
amigos. Sentia-me confuso nesse prazer escondido, onde a sensualidade tinha de
ser percebida e explorada sem esperar retorno, intocável e inatingível.
Sem cheiro, odor ou perfume que anunciasse volúpia. Não conheci o seu
sabor nem deslumbrei excitação, só a sedutora voz e beleza.
Não havia culpa, porque nada fora pedido, e o que era dado, era aceite como quem
aceita a chuva:
sem resistência, sem convite, penas presença. (…)
Rati tinha dois filhos, Harsha (“Alegria”) e Yashas (“Graça”), que conheci. Um dia,
em sua casa, por pouco fomos apanhados quando riamos, a minha mão afagando a pele que a afável disputa descobrira entre a camisa amarrotada e as pernas que se deixavam entrelaçar. O salto que deu ao ouvir a porta do quarto a abrir, demonstrou o embaraço da situação
– “Harsha tem imaginação a mais” – justificou. Camadeva, seu marido, que sublinhava ser o seu grande amor, estava longe, o que proporcionou histórias de atrações não consumadas com colegas ou amigos. Nunca consumadas, embora, estas sim, assumidamente desejadas. O que nunca aconteceu na nossa relação, como se a ternura (?) alcançada necessitasse de negação reafirmada.
Raramente a pele demonstrava excitação, mesmo quando o lugar no corpo o pedia.
Fosse o delicado pescoço, a rosada orelha ou em locais mais proibidos, a sua mão suavemente afastava, murmurando “então!”.
Tudo aquilo baralhava, não conseguia ter
certezas…
Não respondia às carícias recebidas não com palavras, nem com gestos deliberados
mas aceitava, corpo relaxado, olhos entreabertos, como quem consente sem nomear o
consentimento (…)
Ficou zangada quando lhe falei em erotismo tântrico, “deixa-te disso, tens de ter explicação para tudo!” Quando tentava conversar, esclarecer, tentar perceber a situação, ela respondia, sorrindo, que nada se passava, era tudo imaginação minha ocasionada por diferentes visões culturais.
Por vezes fico na dúvida se Rati foi mesmo real, deusa feita mulher mas ainda e sempre inacessível