Com solenidade clerical e um leve cheiro a naftalina do século XIX, dou início a esta crónica com a gravidade de quem anuncia a chegada do Juízo Final — ou, vá, de mais uma cimeira internacional sobre paz no Médio Oriente, que é praticamente o mesmo, só com mais cocktails e menos sinceridade. Prepare-se o leitor para um desfile zoológico de horror, geopolítica e boas maneiras simuladas. Isto não é uma crónica. É um safari sem bilhete de regresso.
Temos, então, o urso Trump, reanimado do seu sono anestesiado com rugidos patrióticos e promessas de voltar a “tornar grande” o que já era disfuncional. A doninha Netanyahu, por sua vez, não precisa de grandes apresentações — é a mascote predilecta de qualquer mesa onde se negoceie paz com os cotovelos. Juntos, são uma dupla que faria corar de inveja os Irmãos Grimm: unidos não pelo amor, mas pela utilidade de destruir terceiros em nome da segurança de quartos.
A ideia é simples e ancestral: bombardear a Pérsia, agora chamada Irão, como quem esvazia um porão cheio de livros subversivos. Dizem que o regime actual é horrível. Talvez seja. Mas há um pequeno pormenor histórico — desses que raramente cabem em manchetes: foram os Estados Unidos que limparam o xadrez iraniano derrubando o Xá. Sim, esse mesmo que mantinha o país num precário equilíbrio entre o vício do petróleo e uma espécie de liberdade que era só ligeiramente menos repressiva do que um seminário de Torquemada. Mas o Ocidente não gosta de meias medidas: prefere a instabilidade total. Dá mais lucro.
Putin, o Leão cavernoso com delírios imperiais e o ego de um czar reencarnado em tainha, já avisou das “consequências graves”. Claro que ninguém lhe liga. A diplomacia moderna funciona como um grupo de WhatsApp onde todos gritam e ninguém lê. A hiena chinesa, que outrora mordiscava silenciosamente as beiras do tabuleiro, agora fornece armas com a discrição de um carteiro nocturno. E ninguém se escandaliza. Afinal, o escândalo exige esforço moral — coisa cada vez mais escassa desde que se inventou o telemóvel inteligente e o cidadão burro.
Israel, com a habitual sobriedade de quem se acha perseguido até quando empurra a vítima para o abismo, continua a transformar Gaza em escombros e a Cisjordânia numa urbanização de luxo. É um caso raro de colonialismo com aplicação para smartphone: “Construa o seu colonato! Escolha azulejos, arme-se com escavadoras e ignore a ONU.” São os Sims versão Nakba.
A hipocrisia, esse anestésico universal, continua a matar com mais eficiência do que qualquer bomba. Porque ao contrário das ogivas, que ao menos exigem um botão e uma ordem, a hipocrisia é espontânea. Cresce como bolor em paredes morais mal ventiladas. Já ninguém se dá ao trabalho de justificar. Basta repetir palavras-chave: democracia, liberdade, terror, segurança. São os mantras do novo xamanismo político. Não iluminam, mas vendem.
Tudo isto seria só uma tragicomédia geopolítica, não fosse o facto de estarmos todos dentro dela, como figurantes mal pagos num teatro que arde em câmara lenta. E há quem aplauda.
No fim, não há moral. Só esta suspeita insidiosa de que o mundo não acabou porque ainda não encontraram patrocinador para o apocalipse. Talvez seja isso que nos resta: uma esperança tão subtil que mal se distingue da resignação. Ou vice-versa.