Entra-se neste texto como quem entra numa sala de espelhos: tudo parece simétrico, mas nada é o que parece. O leitor que se apresse com certezas sairá mais tonto do que entrou, porque esta crónica é um exercício de arqueologia moral em solo pantanoso — exactamente o tipo de solo onde germinam políticos com a facilidade de bolor num tupperware esquecido. Montenegro, esse pastor evangélico do centrismo reciclado, descobriu o segredo da justiça rápida: é só não a deixar começar.
Sim, enquanto o povo espera que os tribunais avancem com a velocidade de um caracol asmático, o primeiro-ministro recorre, reclama, interpõe, posterga, escreve pareceres com a lentidão de um monge copista medieval, tudo para não responder a uma pergunta que nenhuma criança de dez anos teria dificuldade em entender: afinal, quem é a sua Spinumviva?
(Nome que, aliás, soa a planta carnívora de ficção científica, daquelas que engolem cientistas descuidados em filmes de baixo orçamento e orçamento ainda mais baixo de vergonha.)
Mas o que interessa aqui não é a amante — que talvez nem o seja, talvez seja só um holograma de conveniência. O que interessa é o balé jurídico, essa dança delicada entre o formalismo e a fuga, entre a toga e a máscara. Porque, ao contrário do que se grita nas pastelarias indignadas, a Justiça em Portugal não é lenta. Ela apenas se ajoelha quando lhe convém — e às vezes rebola.
Montenegro, no seu zelo pelo recato, faz lembrar aquele aristocrata francês que exigia ser julgado apenas por outros aristocratas, alegando que o povo não saberia compreender as “complexidades do seu estatuto”. A diferença é que o francês foi guilhotinado. Montenegro vai à TV.
E é aqui que entra José Sócrates. Sim, o nome que já é insulto automático nas caixas de comentários, mas que convém recuperar com precisão arqueológica. Também ele mestre da dilação, especialista em transformar o tempo judicial em tempo geológico, arrastando processos como quem arrasta móveis em casa alugada — com o cuidado
de não deixar marcas, mas sem qualquer pressa. Não por estratégia, atenção, mas por instinto. Os pavores têm relógio próprio.
Ambos, Sócrates e Montenegro, partilham esta fé quase alquímica na burocracia como acto de camuflagem. São discípulos da Escola do Empata, corrente filosófica que acredita que, quanto mais se recorre, menos se responde. E se não se responde, não se mente — apenas se adia a verdade até que ela perca interesse. Ou dentes.
Mas se a Justiça fosse um jogo de xadrez, eles jogariam com peças invisíveis. Só que, em Portugal, o tabuleiro é de barro, e os juízes andam com medo de escorregar.
A ironia? Montenegro chegou ao poder a pregar transparência como quem vende água benta na auto-estrada. Agora, quando lhe pedem que acenda a luz, responde com um “não posso, há recurso pendente”. Como se a verdade tivesse de passar por três instâncias antes de se apresentar em público, devidamente trajada.
Não se trata aqui de moralidade — conceito já exilado há muito da política portuguesa, a viver algures num mosteiro abandonado — mas de estilo. Montenegro não mente. Montenegro ensopa a verdade em papel timbrado e depois diz que está molhada demais para se ler.
A Justiça, essa, observa em silêncio, como uma senhora idosa a assistir a um jogo de cartas em que já ninguém segue as regras, mas todos fingem que sim. A lentidão, afinal, é apenas o disfarce da seletividade.
E assim seguimos, entre pauzinhos na engrenagem e silêncios administrativos, num país onde a verdade se move à velocidade de uma confissão num confessionário vazio. Há esperança? Talvez. Mas só depois do próximo recurso.